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1- Pondo-se de costas para as manifestações do povo peruano, o Congresso rejeitou pela quinta vez o pedido de antecipação de eleições gerais e sequer considerou a proposta de convocação de Assembleia Constituinte, também reivindicada nas ruas. Manifestamos nossa solidariedade à luta dos ativistas que tomaram as ruas para exigir a renovação de todo o congresso e a renúncia de Dina Boluarte, que foi vice-presidenta e ministra no governo destituído de Pedro Castillo. Que ela e seu governo sejam responsabilizados, conforme processo na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pela dura repressão aos manifestantes em luta pela antecipação das eleições presidenciais e congressuais, e que já custou a vida de 66 peruanos (48 assassinados nas manifestações,11 civis nos bloqueios e 7 policiais) e 1335 feridos desde 7 de dezembro, além das centenas de prisões arbitrárias e outras violações aos Direitos Humanos.

2- É o chamado Peru profundo, das serras andinas e das áreas mais pobres do Peru, especialmente do sul do país, na região de Puno, com maioria de camponeses e descendentes de indígenas, que seguiu lutando nas ruas, depois de ter feito barricadas nas estradas e se deslocado à capital para manifestar sua rejeição ao congresso golpista e ao governo usurpador. Seguiu protestando diante da constatação de que mais uma vez sua voz não é ouvida, seu voto não foi respeitado e, infelizmente, continua predominando o preconceito de classe, raça e origem, que faz com que os habitantes do sul andino sejam tratados como cidadãos de segunda categoria, cujas vidas não importam. Camponeses andinos e descendentes de indígenas supunham que desta vez conquistariam direitos, pois um dos seus, Pedro Castillo, foi eleito presidente. Mas já foi apeado do poder, como se tivesse ido longe demais para alguém como ele – e como a maioria dos que lutaram e ainda protestam. É essa revolta que os tem movido, e que não é sequer compreendida pelos setores médios urbanos e sobretudo pela elite burguesa de Lima.

3- Intensificando os protestos e cercos nas rodovias, os manifestantes do sul andino pediram também a liberdade de Pedro Castillo, que segue em prisão preventiva renovada recentemente por 36 meses, acusado de tentativa de golpe de estado e corrupção. Sua vitória nunca foi aceita especialmente pela burguesia limenha, não apenas por ser um representante da classe trabalhadora que foi eleito contra a mídia e a burguesia, mas especialmente por sua origem indígena e camponesa. Ele anteriormente se destacou como liderança sindical de uma das maiores greves de professores do ensino básico da região mais pobre, o sul do país, sem nunca ter disputado antes qualquer cargo na política partidária.

4- Tendo passado ao segundo turno das eleições presidenciais em 2021 com menos de 30% dos votos, Castillo conseguiu obter maioria pela extrema fragmentação e falta de lideranças amplas na esquerda e na direita. Encurralado pela extrema-direita golpista, ele se mostrou personalista e inexperiente, tendo destituído os ministros de esquerda para tentar contemplar a direita em seus cinco gabinetes. Nada disso adiantou e ele seguiu isolado, cometendo diversos erros políticos. De fato, Castillo não conseguiu governar durante o ano e meio que permaneceu no cargo, sem consolidar os apoios de partidos recebidos no segundo turno e perdendo aqueles que construíram sua candidatura, descontentes com os rumos do governo e a inabilidade do presidente. Eleito defendendo políticas econômicas e sociais à esquerda, é ideologicamente conservador nos costumes. Deixou o partido que o elegeu, o Peru Libre – que reivindica Marx e Mariátegui – para não ser expulso diante das incoerências que sustentava. Logo vieram as denúncias de tráfico de influência e corrupção envolvendo membros de sua família, todas apresentadas pela direita e sem o devido processo ter sido julgado. Enquanto isso, o gabinete de governo seguia numa linha econômica neoliberal, bastante diferente de seu discurso de campanha, no qual defendeu uma nova Constituição que garantisse direitos para os trabalhadores, para enfrentar a enorme desigualdade social do país.

5- Com o aprofundamento da crise política, sem alcançar a aprovação dos seus projetos e atacado dia e noite pela mídia, Castillo foi ampliando seu isolamento e aumentando sua rejeição. Nunca conseguiu ganhar apoio dos setores médios de Lima e entorno, inclusive dos sindicatos, movimentos sociais e estudantis, por suas posições sociais conservadoras, de fundo religioso, e também por seus erros. O maior deles foi o discurso que proferiu em 7 de dezembro, o dia em que seria votada pela terceira vez a “moção de vacância”, e que surpreendeu a todos. Anunciou que naquele momento dissolvia o congresso, reformaria Suprema Corte e passaria a governar por decreto até que fosse promulgada uma nova Constituição.

6- Foi sem dúvida um grave erro sem qualquer planejamento ou lastro político, evidentemente fadado ao fracasso. Por isso a resistência nas ruas tardou e seguiu fragmentada, sem um sujeito político consciente que a organize de modo unificado. Na sequência, o Congresso enfim conseguiu, após duas tentativas anteriores fracassadas, aprovar a “vacância do cargo” – uma forma rápida de impeachment – do presidente eleito, que é declarado “em estado de incapacidade moral” em votação única de no mínimo 2/3 do Congresso, que é unicameral. Depois de sua destituição e prisão preventiva, Castillo foi informado de que teria se precipitado, pois não havia votos suficientes para aprovar a terceira tentativa de vacância, como nas duas vezes anteriores. Seus ex-companheiros do Peru Libre continuariam votando contra o impeachment apressado. Entretanto, após o fatídico e surpreendente discurso transmitido ao vivo, a vacância foi aprovada por ampla maioria.

7- Tendo Castillo surpreendido seus apoiadores, a resistência começou desorganizada e insuficiente para impedir sua destituição e prisão, enquanto se dirigia à embaixada do México. As lutas cresceram durante o mês de janeiro, mas ainda estavam localizadas na sua região de origem e maior apoio, especialmente Puno, Ayacucho, Apurímac, Arequipa e Cusco, com ações como o cerco nas rodovias e a tomada do aeroporto de Juliaca, departamento de Puno, em 8 de janeiro, uma área indígena onde um grande conflito com as forças repressoras acabou com 17 manifestantes assassinados. A partir daí, seus apoiadores se organizaram para descer até Lima, onde a comoção popular com os assassinatos de manifestantes gerou grandes manifestações, com ampla adesão à bandeira da antecipação das eleições gerais. Em 22 de janeiro, a polícia peruana invadiu a Universidade Nacional Maior de San Marcos, a mais antiga da América do Sul, e realizou 200 prisões arbitrárias de estudantes, indígenas e camponeses que lá estavam abrigados da repressão.

8- O sistema peruano, após as emendas constitucionais feitas em 2004 pelo Congresso, é um tipo híbrido de presidencialismo enfraquecido, que prevê um gabinete de governo indicado pelo presidente e aprovado pelo Congresso, mas liderado por um Chefe do Gabinete de Governo que funciona como um “primeiro-ministro” e é assim denominado pela mídia, e que toca o dia a dia da gestão. Está previsto que após duas rejeições do gabinete seguidas o Congresso é dissolvido, com a convocação de novas eleições. Entretanto, a dissolução congressual não é possível em caso de tentativas derrotadas de “vacância de presidente”, dispositivo previsto desde a Constituição peruana de 1860, mas que foi facilitado pelas alterações constitucionais de 2004.

9- Desde o fim da ditadura de Fujomori em 2000, o Peru teve onze presidentes, sendo oito deles processados por corrupção. Três sofreram impeachment, um se suicidou (Alan García) e dois foram presos após o fim do mandato. Nos últimos seis anos, foram cinco presidentes até Castillo; nenhum conseguiu terminar o mandato. Nesse sistema, é muito mais fácil tirar um presidente eleito do que destituir um parlamentar, e quase impossível dissolver o congresso e convocar eleições, como demonstram as duas tentativas recentes e fracassadas de adiantar as eleições gerais, porque quem decide tudo é o empoderado Congresso.

10- Semelhante a vários países na América Latina, o país está cindido ideologicamente: de um lado, a direita e a extrema direita, cujas posições são veiculadas pela maioria da mídia e apoiadas pela burguesia das grandes cidades; de outro, a esquerda (ainda que fragmentada), a grande maioria pobre das periferias e da região sul do país, formada por descendentes de indígenas e camponeses, politicamente dispersa, mas que não se sente representada pelo atual congresso, eleito pelo poder econômico. Não há partidos orgânicos e fortes, com estrutura de funcionamento fora do período eleitoral. No Peru as eleições são financiadas pelas empresas e pelo mercado financeiro, que, com vultosas doações, garante a cada cinco anos a defesa de seus interesses. Esse processo não contribui para a construção de uma classe política que possa colaborar para a transformação das imensas desigualdades sociais e regionais.

11- Castillo se filiou ao Peru Libre, um partido relativamente novo, para concorrer à presidência, já que o principal nome do partido, Vladimir Cerrón, estava inviabilizado por um processo judicial. Sua principal adversária foi Keiko Fujimori, filha do ditador Alberto Fujimori, liderança da extrema-direita que concorreu pela “Fuerza Popular”, partido que reúne os fujimoristas (importante corrente com força ainda no país), mas também não tem tradição de vida partidária. Demais partidos são meras agremiações de aluguel, que aparecem em épocas de eleições e se dissolvem em votações contraditórias no Congresso unicameral de 130 deputados. O Congresso atual tem uma rejeição muito alta da população – cerca de 80% dos peruanos não confiam nos parlamentares e 75% querem eleições gerais já. Mas Castillo também tinha rejeição muito alta – mais de 70% desde os primeiros meses de governo, e sua situação foi se agravando inclusive entre seus apoiadores da esquerda.

12- Presidente por conivência com o golpismo, a vice-presidenta Dina Boluarte também foi escolhida para o cargo sem muito debate, apenas por ser uma mulher que se contrapunha às posições preconceituosas de Castillo. Para agradar à direita e se manter no cargo, Boluarte desligou-se do partido Peru Libre e tem assumido posições próximas ao fujimorismo. Completados 100 dias desse governo ilegítimo, segue grave a crise política no Peru. No momento, a presidenta em exercício está sendo responsabilizada e processada pelo abuso da força policial de seu governo, em flagrante desrespeito aos direitos humanos. Sua rejeição já atingiu 80%, superando Castillo, e já lhe abriram um processo por corrupção, como ocorreu aos presidentes que lhe antecederam.

13- Devido à forte crise política em que o Peru está mergulhado, o apoio à antecipação das eleições gerais é alto inclusive em Lima, onde a rejeição ao governo de Pedro Castillo (e à própria pessoa dele) sempre foi intensificada pela mídia e pela burguesia, que não se sente parte da mesma nação composta pelas classes pobres do sul andino e das periferias, de maioria camponesa e/ou descendente de indígenas. Já no começo do século XX, o escritor e liderança socialista José Carlos Mariátegui diagnosticou como uma chaga peruana esse apartheid entre as duas metades do país, uma delas embranquecida, com costumes europeus, de alta renda e indiferente à desigualdade social escancarada. Para essa metade, Castillo era um obstáculo a ser removido, mas a crise política atrapalha o turismo, de onde vem boa parte da renda nacional, e o mercado financeiro.

14- É notório que em Lima a polícia evitou abrir fogo contra os manifestantes, como faz nas áreas mais pobres do país. Para tentar esvaziar os confrontos, Dina Boluarte proibiu manifestações em diversas áreas da capital com seus decretos de situação de emergência, especialmente nas grandes vias e praças. Contrariando as aspirações populares, neste 14 de março a Comissão de Constituição e Regulamento da República sepultou as chances de antecipação das eleições para o ano corrente, rejeitando por ampla maioria que a proposta vá a voto no plenário do Congresso. O projeto de convocação de assembleia constituinte sequer foi considerado. A população segue majoritariamente apoiando a antecipação das eleições gerais, de acordo com as pesquisas, mas neste momento não há atores políticos amplos, como partidos ou movimentos sociais, que encabecem essa reivindicação nas grandes cidades. Por isso o movimento arrefeceu.

15- Entretanto, cabe a consideração de que a proposta de assembleia constituinte, caso retorne ao congresso nesta legislação, não tem como representar por si só uma mudança na correlação de forças na sociedade peruana atualmente. Somente com a organização das lutas, a tomada de consciência por parte da classe trabalhadora, o avanço da resistência popular e a construção de uma forte organização político-partidária contra-hegemônica será possível enfrentar a opressão de classe e raça da burguesia sobre a maioria do povo peruano.

Grupo de Trabalho de Conjuntura e Relações Internacionais – Coordenação Nacional da APS – março de 2023.

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