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Leonardo Wexell Severo, especial para o Correio da Cidadania


No úl­timo do­mingo, Da­niel Or­tega foi eleito para seu quarto man­dato como pre­si­dente da Ni­ca­rágua, mas Mó­nica Bal­to­dano, Co­man­dante da Re­vo­lução San­di­nista que li­bertou a Ni­ca­rágua da di­ta­dura de Anas­tasio So­moza, de­nuncia que não “houve eleição, mas uma apre­sen­tação tão ri­dí­cula que não cui­daram se­quer da en­ce­nação”.

“Muito mais do que não ir votar nas elei­ções de do­mingo (7), os ni­ca­ra­guenses dei­xaram as ruas com­ple­ta­mente de­sertas, como quando há uma greve geral. A abs­tenção foi imensa, uma res­posta ao en­tre­guismo de Or­tega e a uma po­lí­tica ne­o­li­beral e pri­va­tista que, para manter-se no poder, ne­ces­sita prender todos os prin­ci­pais can­di­datos da opo­sição”. A de­núncia é da co­man­dante guer­ri­lheira Mó­nica Bal­to­dano, his­tó­rica li­de­rança da Frente San­di­nista de Li­ber­tação Na­ci­onal (FSLN), di­ri­gente do Mo­vi­mento Res­gate do San­di­nismo e ex-de­pu­tada da As­sem­bleia Na­ci­onal. De acordo com a co­man­dante, “não houve eleição, foi tudo um te­atro, uma apre­sen­tação ri­dí­cula, tão ri­dí­cula que não cui­daram se­quer da en­ce­nação”.

Presa e tor­tu­rada pela di­ta­dura de Anas­tasio So­moza – sus­ten­tada pelo go­verno dos Es­tados Unidos – ga­nhou papel de des­taque du­rante a luta in­sur­re­ci­onal (1978-1979). Uma irmã de Mó­nica Bal­to­dano perdeu as duas mãos na luta guer­ri­lheira e outra foi as­sas­si­nada por um bom­bar­deio so­mo­zista. Per­se­guida pelo re­gime de Or­tega, atu­al­mente en­contra-se com a fa­mília no exílio.

Que tipo de can­di­datos da opo­sição o go­verno teve de co­locar atrás das grades para vencer as elei­ções?

A ma­neira como foram re­a­li­zadas as elei­ções do úl­timo do­mingo, que Or­tega alega terem sido as mais li­vres e de­mo­crá­ticas, foi per­versa e po­de­ríamos qua­li­ficar de ma­cabra. Não é pró­prio de ne­nhuma de­mo­cracia, seja ela de es­querda ou de di­reita.

O ci­nismo e os ex­tremos a que chegou Or­tega, já pas­sados 20 anos do sé­culo 21, estão bem claros, uma vez que existem me­ca­nismos mun­di­al­mente aceitos para medir ou re­chaçar um re­gime ou um go­verno.

O que fez Or­tega é pró­prio de uma di­ta­dura que faz de tudo para se manter no poder, pas­sando não só por cima da von­tade po­pular como da mí­nima in­te­li­gência que se pode atri­buir a qual­quer or­ga­ni­zação, par­tido ou força po­lí­tica.

Em re­lação a tua si­tu­ação par­ti­cular, como ex­po­ente da Frente San­di­nista de Li­ber­tação Na­ci­onal (FSLN) na luta contra a di­ta­dura de Anas­tácio So­moza, o que dizer?

Nós vi­emos de­nun­ci­ando Or­tega há dé­cadas por seu aban­dono dos prin­cí­pios e das po­lí­ticas trans­for­ma­doras, por ter se ape­gado às con­cep­ções mais con­ser­va­doras, seja do ponto de vista dos di­reitos da mu­lher, da li­ber­dade se­xual ou re­li­giosa.

De­nun­ci­amos por ter se ape­gado às po­lí­ticas ne­o­li­be­rais, se atre­lado aos Tra­tados de Livre Co­mércio (TLC) e es­tamos fa­lando dos pri­meiros anos do sé­culo 21, em que com­pro­meteu toda a Frente San­di­nista com os TLCs, quando na Amé­rica La­tina, no Brasil, na Ve­ne­zuela e na Ar­gen­tina todos os povos es­tavam lu­tando contra.

Também Or­tega se do­brou à po­lí­tica dos Es­tados Unidos quando abriu mão do nosso di­reito de de­fesa e de in­de­pen­dência em re­lação ao Co­mando Sul. Ele mandou os prin­ci­pais ofi­ciais do Exér­cito para es­tudar na Es­cola das Amé­ricas!

Se o dis­curso é um, a prá­tica é outra. Isso vi­emos de­nun­ci­ando desde que ele chegou ao go­verno. Temos de­nun­ciado essa po­lí­tica desde bem antes do mas­sacre de 2018. [Na época, con­forme a Co­missão In­te­ra­me­ri­cana de Di­reitos Hu­manos (DIDH), a vi­o­lenta ação de po­li­ciais e pa­ra­mi­li­tares deixou 328 mortos, mais de mil fe­ridos, 1.600 de­tidos e fez com que mais de 100 mil pes­soas mi­grassem ou se exi­lassem].

Os fa­mosos “co­o­pe­rantes” que vi­nham para a Ni­ca­rágua, que de­nun­ciá­vamos serem agentes da CIA, ti­nham as portas abertas. Na Ni­ca­rágua e por toda a Amé­rica La­tina che­gavam para em­purrar as po­lí­ticas norte-ame­ri­canas e Or­tega, em seus pri­meiros anos de go­verno, re­cebeu o prin­cipal chefe dos “Amigos das Amé­ricas”. Há en­tre­vistas nos jor­nais na­ci­o­nais o elo­gi­ando.

Todas essas coisas vi­nham sendo de­nun­ci­adas muito antes da su­ble­vação de 2018. Os Es­tados Unidos ti­nham uma ava­li­ação ex­tre­ma­mente po­si­tiva de Or­tega, tanto é assim que a sua em­bai­xa­dora na Ni­ca­rágua de­clarou que não lhe im­por­tava nada do que ele dizia, mas o que fazia. Não lhe im­por­tava seus dis­cursos contra o im­pe­ri­a­lismo, mas a sua prá­tica, a sua po­lí­tica de en­ten­di­mento com o grande ca­pital na­ci­onal e trans­na­ci­onal. Porque as con­sequên­cias eram ób­vias para os EUA e para todos que se in­te­res­sassem em saber sobre o que es­tava se pas­sando na Ni­ca­rágua.

Por­tanto, o que acon­teceu em 2018 foi so­mente o re­sul­tado da de­ge­ne­ração de Or­tega, de uma gui­nada nos pro­pó­sitos da Re­vo­lução San­di­nista?

Exa­ta­mente. Foi o re­sul­tado das pri­va­ti­za­ções, da po­lí­tica de des­man­te­la­mento da Se­gu­ri­dade So­cial, que es­tou­raram neste ano. Cinco anos antes ele já havia en­tre­gado a so­be­rania da Ni­ca­rágua a uma trans­na­ci­onal de ca­pital chinês, mas que era na re­a­li­dade uma em­presa que tinha o pro­pó­sito cla­ra­mente re­ve­lado de vender o in­ves­ti­mento para a cons­trução de um canal in­te­ro­ceâ­nico na Bolsa de Va­lores, ao me­lhor li­ci­tante.

Ou seja, o em­pre­sário Wang Jing [dono de uma firma criada em Hong-Kong], que dizia re­pre­sentar o exér­cito chinês, tinha na ver­dade o ob­je­tivo de in­vestir US$ 50 bi­lhões, valor que se ale­gava que cus­taria a obra, para es­pe­cular. Wan Jing so­mente queria ofertar o ter­ri­tório ni­ca­ra­guense para a cons­trução de um porto de águas pro­fundas e todo tipo de ne­gó­cios na faixa do canal. [Abor­tado em 2016 pela fa­lência do mul­ti­mi­li­o­nário, o canal sempre se tratou de um pro­jeto pri­vado e não do Es­tado chinês].

Isso foi feito cinco anos antes de 2018, o que fez com que sur­gisse um mo­vi­mento cam­ponês muito forte, que se man­teve mo­bi­li­zado. Por­tanto, o que ocorreu em 2018 foi con­sequência de sua po­lí­tica en­tre­guista, de sua po­lí­tica contra os agri­cul­tores, de sua po­lí­tica de en­trega, seja do ter­ri­tório para as mi­ne­ra­doras, de ex­plo­ração dos bos­ques ou das águas para as trans­na­ci­o­nais pes­queiras.

A per­se­guição a Er­nesto e Fer­nando Car­denal, ícones da re­vo­lução, se dá em que con­texto?

O poeta Er­nesto Car­denal, pre­miado em nível in­ter­na­ci­onal, sa­cer­dote da Te­o­logia da Li­ber­tação, foi per­se­guido após de­nun­ciar as prá­ticas an­ti­de­mo­crá­ticas de Or­tega, que antes de ser di­tador do país foi di­tador dentro da Frente San­di­nista. Ele co­meçou a im­ple­mentar po­lí­ticas de con­trole ab­so­luto, em que não havia es­paço para o sur­gi­mento de novas li­de­ranças, ele era sempre o único du­rante 40 anos: seja como se­cre­tário-geral da Frente, seja como can­di­dato à pre­si­dência do país. E Er­nesto Car­denal também o de­nun­ciou pela cor­rupção. Or­tega sus­tentou pro­cessos “ju­rí­dicos” que quase le­varam o sa­cer­dote para a prisão.

O fato é que todos nós, os san­di­nistas que se opu­nham ao seu re­gime e de­fen­diam a de­mo­cracia e o de­nun­ciá­vamos a partir de nossa atu­ação dentro da FSLN, éramos con­si­de­rados como ini­migos.

Nin­guém mais po­deria pos­tular ser can­di­dato, era so­mente ele e ponto, uma po­lí­tica de total con­trole do par­tido e do poder. Per­se­guia a todos que não se en­qua­drassem no seu mo­delo, não acei­tava elei­ções in­ternas para de­finir can­di­da­turas. Por isso per­se­guiu o Er­nesto e de­pois o seu irmão, o também sa­cer­dote Fer­nando.

Como ava­lias a im­por­tância da so­li­da­ri­e­dade in­ter­na­ci­onal e de ma­ni­fes­ta­ções como as das chan­ce­la­rias da Ar­gen­tina e do Mé­xico em favor do diá­logo e contra as per­se­gui­ções?

Desde junho, temos 40 novos presos po­lí­ticos. No úl­timo sá­bado fi­zeram ba­tidas e cap­tu­raram ou­tras 30 pes­soas, mas al­gumas já foram li­be­radas. Foi algo so­mente para ate­mo­rizar. Entre estes está a es­posa do meu irmão, um pro­fessor uni­ver­si­tário que es­teve nove meses preso.

Con­ti­nuam na prisão os sete prin­ci­pais can­di­datos da opo­sição. Então temos agora 150 presos po­lí­ticos, dentro dos quais muitos lí­deres co­mu­ni­tá­rios e re­gi­o­nais, mais de dez mu­lheres.

Daí a im­por­tância de a co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal manter a pressão e se­guir re­cha­çando a farsa elei­toral. Veja bem, não se trata de re­pu­diar o re­sul­tado, já que não houve eleição, foi tudo um te­atro, uma apre­sen­tação ri­dí­cula, tão ri­dí­cula que não cui­daram se­quer da en­ce­nação.

O Ob­ser­va­tório Ci­dadão Urnas Abertas apontou um ín­dice médio de abs­tenção su­pe­rior a 80%. Qual a sua ava­li­ação?

O úl­timo le­van­ta­mento de um ins­ti­tuto de pes­quisa in­de­pen­dente, que é o CID Gallup, in­di­cava que 70% dos ni­ca­ra­guenses es­tavam dis­postos a votar em qual­quer um dos can­di­datos presos e que apenas 25% se dis­pu­nham a par­ti­cipar das elei­ções. Porém, o que se fez foi muito mais do que não ir votar, mas uma pa­ra­li­sação que deixou as ruas com­ple­ta­mente aban­do­nadas, como quando há uma greve geral de toda a ati­vi­dade econô­mica.

Isso foi o que ocorreu: as ruas e as urnas da Ni­ca­rágua es­tavam ab­so­lu­ta­mente de­sertas. Os cen­tros de vo­tação só re­gis­traram a pre­sença dos par­ti­dá­rios deles em al­gumas horas da manhã, de­pois das dez já não havia nin­guém, porque eles pe­diram que fossem votar bem cedo. A in­for­mação que re­ce­bemos de todas as re­giões é que a abs­tenção foi imensa, ab­so­lu­ta­mente geral. In­clu­sive houve parte dos vo­tantes tra­di­ci­o­nais deles que não par­ti­ci­param destas elei­ções.

Assim, a pers­pec­tiva é de um des­co­nhe­ci­mento in­ter­na­ci­onal. O des­co­nhe­ci­mento na­ci­onal já se ex­pressou. Nossa ex­pec­ta­tiva é a re­ar­ti­cu­lação da luta e da re­sis­tência.

Di­ante de tantas per­se­gui­ções e pri­sões, como estás no mo­mento?

Nós saímos para o exílio em agosto deste ano, após per­ma­ne­cermos dois meses es­con­didos, clan­des­tinos, porque de­fi­ni­ti­va­mente não existia ne­nhuma pos­si­bi­li­dade de fi­carmos e a pro­ba­bi­li­dade de que fôs­semos cap­tu­rados era muito alta. Es­tá­vamos certos de que se con­ti­nuás­semos no país iríamos ser cap­tu­rados, da mesma forma que fi­zeram com ou­tros co­man­dantes guer­ri­lheiros da re­vo­lução, como Dora María Téllez e Hugo Torres, que foram ver­da­deiros he­róis da luta contra So­moza. Os dois já estão de­tidos há mais de quatro meses e nas pi­ores con­di­ções de iso­la­mento, sub­me­tidos à má ali­men­tação, com vi­o­lação ab­so­luta de seus di­reitos hu­manos. Isso tudo sem que te­nham sido pro­ces­sados, de­tidos de forma ilegal, vi­o­lando todas as ga­ran­tias pre­vistas na Cons­ti­tuição do país. Por isso ti­vemos que sair. Mesmo agora, após a úl­tima ba­tida feita na se­mana pas­sada, fal­tando apenas al­gumas horas para o pleito, no sá­bado (6), era grande o nú­mero de pes­soas fu­gindo para o exílio.

Presa du­rante a di­ta­dura de So­moza, so­freste com o as­sas­si­nato de uma irmã por um bom­bar­deio na luta pela li­ber­tação na­ci­onal e outra que perdeu as mãos na guer­rilha. In­fe­liz­mente, contra esta rica tra­je­tória de ab­ne­gação e des­pren­di­mento, muitos estão so­frendo hoje a per­se­guição do go­verno. Como te sentes?

De­pois disso tudo, nos dói muito termos gente como Da­niel Or­tega fa­zendo de tudo para se per­pe­tuar no poder.

Gos­taria de deixar uma úl­tima pa­lavra?

Eu gos­taria de fazer uma con­cla­mação, par­ti­cu­lar­mente aos mo­vi­mentos so­ciais, do Brasil e de toda a Amé­rica La­tina, porque os ni­ca­ra­guenses, entre os quais existem mi­lhares de san­di­nistas que lu­tamos contra a di­ta­dura e que mi­li­tamos nas ideias de es­querda, temos sen­tido em al­guns se­tores um res­paldo acrí­tico e ir­ra­ci­onal ao re­gime de Da­niel Or­tega. Um apoio sem que seja feita uma ava­li­ação do que isso sig­ni­fica, sem com­paixão com o povo ni­ca­ra­guense.

Quem adota esta pos­tura nada mais faz do que se des­pres­ti­giar, pois res­palda um go­verno ne­o­li­beral, pri­va­tista, pa­tri­arcal, an­ti­fe­mi­nista e ho­mo­fó­bico, que re­pre­senta a ne­gação de todos os va­lores, ob­je­tivos e prin­cí­pios pelos quais lu­tamos e de­di­camos o me­lhor de nossas vidas. Neste mo­mento, mais do que nunca, pre­ci­samos de so­li­da­ri­e­dade e con­tamos com vocês para que a Ni­ca­rágua re­tome o ca­minho da de­mo­cracia.


Le­o­nardo We­xell Se­vero é jor­na­lista e co­la­bo­rador do Cor­reio da Ci­da­dania

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