As mitologias nos falam de assuntos fundamentais sobre nós mesmos e sobre princípios essenciais que deveríamos tomar conhecimento A magia do mito do mal há de ruir sob a luz da paixão à vida. Artigo de Elane Correia*, a seguir.

 A magia do mito e o mito da magia

A magia com seus mitos aproxima-se dos corações humanos de forma simbolizada, despertando-os criticamente à sensibilidade da dinâmica da vida ou alimentando-os à sua conformação. Porque traz a realidade em forma figurada, buscando imitar ou reproduzir a realidade.

Torna-se relevante para o despertar da vida interior do ser humano ao roçar simbolicamente as simbologias psíquicas individuais e coletivas, possibilitando neste vai e vem de encontros o despertar de olhares críticos aos problemas afligidores do imaginário social e da vida real.

Freud entendia que os mitos são da ordem psicológica dos sonhos. Os Mitos, por assim dizer, são sonhos públicos e sonhos são mitos privados.

Para Campbell, os mitos quando lidos corretamente constituem o meio de nos enlaçar de volta aos princípios estéticos da vida, assim como também ao não retorno. O mito do Jardim do Éden, por exemplo, refere-se aos frutos das duas árvores, da imortalidade dos valores éticos e humanos e a dos frutos do bem e do mal, cujo conhecimento maléfico fizeram e ainda fazem tentações às mentes humanas devido à sua essência fetichizadora.

Porque os mitos e a arte, lendas e contos, nos falam em linguagem adornada a respeito das forças da psique individual e social. Forças estas que sempre foram comuns ao espírito humano e social, que representam a sabedoria da espécie humana, graças as quais o homem tem vencido as lutas milenares ou sucumbido às desgraças humanas e sociais.  Por isso que essas simbologias não podem ser jamais desautorizadas como alternativas de conhecimento da realidade pela ciência que, por sua vez, se relaciona mais com o mundo exterior do que com as profundezas onde residem os sonhos.

A sociedade que mantém vigorados seus mitos e demais afigurações será nutrida pelo vigor de suas forças no espírito humano, seja do bem ou do mal.

Jung, conforme Campbell, observa o perigo que há de as sociedades serem arrastadas pelos próprios sonhos e mitos herdados de padrões tenebrosos e de sentimentos e pensamentos fora dos níveis contemporâneos de ascendência humana.

Para enfrentar essa situação, faz-se necessário estabelecer um diálogo entre o inconsciente e consciente individual e social por meio também de formas simbólicas, para não rejeitarem a ciência política e se agarrarem às falsas crenças ou falsos “messias”. Porque os sentimentos do mal imersos em magias de mitos obscuros e cruéis conseguem inverter valores, desmanchar princípios, criando uma avalanche de desmonte do sentido de verdade ao colocar a sociedade de ponta cabeça.

Para enfrentar os mitos com suas magias nefastas somente as ferramentas poderosas das flechas flamejantes das magias do universo de resistência e luta, especialmente a magia da compreensão da beleza utópica de uma vida recheada de plenitude da felicidade humana.

Porque as magias com seus mitos e os mitos com suas magias possuem força histórica atemporal que traçou o rumo da humanidade, emergiu no mundo dos humanos quando os humanos se tornaram humanos sapiens.

A mitologia é aparentemente contemporânea da humanidade.  As preocupações mitológicas já moldavam as artes e o mundo do homo sapiens. O reconhecimento da morte e a necessidade de transcendê-la é o grande impulso para a mitologia.

A força nuclear da estruturação dos mitos e da sociedade baseia-se na inevitabilidade da morte individual e durabilidade da ordem social pós sua morte. O terceiro elemento de sua constituição refere-se ao domínio e contexto da experiência humana, cujo processo possibilita ao ser humano encontrar-se a si mesmo e tecer os mitos à medida que seu pensamento e observações apreendem o mundo natural e social em sua totalidade. É no balanço do movimento de alinhamento entre pensamento e mitos que nos formamos e nos transformamos individualmente e socialmente.

No mito de Adão e Eva, os querubins, daquele tempo e os contemporâneos também, com a espada recheada de macabras políticas nos distanciam da árvore da sabedoria da imortalidade, para que não atinjamos a sabedoria cósmica dos bons princípios. Mas, é no pendular dos mitos que Lilith, a primeira mulher de adão e a primeira a habitar a terra, quebrantou o poder masculino de Adão ao questionar sua submissão ao poder do falo, tornando-se livre.

Os mitos não são históricos, não falam de eventos externos, mas de temas da imaginação, aspectos permanentes do espírito humano ou da psique, basicamente referidos ao elemento binário de opostos, o bem e o mal. Sua face a-histórica dialoga com sua materialização no curso da vida, cuja vibração encarnada em períodos assombra ou acaricia prazerosamente o mais inocente dos seres. Assim, os mitos possuem a veracidade temporal e atemporal.

As mitologias nos falam de assuntos fundamentais sobre nós mesmos e sobre princípios essenciais que deveríamos tomar conhecimento.

O Jardim do Éden não se refere a qualquer cenário geográfico, conforme Campbell, mas a uma paisagem da alma que deveria estar dentro de nós, mas nossas mentes conturbadas pelas tentações do fetiche mágico que esconde o real sentido da perversidade valorativa são incapazes de ingressar nele para desfrutar o sabor da vida eterna. Estou me referindo à sociedade de felizes onde haja igualdade entre os seres humanos diferentes.

Esta impossibilidade de adentrarmos contemporaneamente na alma da imortalidade do Éden se dá porque ainda não provamos do gosto do conhecimento do fruto do bem (sociedade de felizes), porque escolhemos sempre o do mal (sociedade capitalista), cujo malefício atual, materializado pelo “cão dos infernos”, nos arremessou para fora do nosso próprio centro, cortando temporariamente o nosso cordão umbilical com a possibilidade de construção da ética libertária.

Parece ser este um dos significados do mito quando lido não como pré-história, mas com referência ao estado interior espiritual e social, afirma Campbell.

Para entender alguns elementos que nos afastam do Jardim do Éden, poderíamos afirmar que isto ocorre devido ao apego popular à atemporalidade espacial da árvore enraizada em pilares mistificados, que traz o fruto maldito dos maus agouros. Não escolhendo, portanto, a árvore da imortalidade da ética do bem… Certamente por estarmos sob a truculência ferina dos querubins guardiães da árvore da vida e mergulhados na força mágica do sombrio túnel estonteante de inverdades ensandecidas com suas procissões robotizadas de idiotificação, ainda marcadas pelos sentimentos de ódio e violência, cujo laço maldito ataram  os corpos fetichizados pela magia.

Tristemente, poderíamos imaginar que esses corpos fetichizados pela magia relutam em desistir ou acreditar na imensurável dimensão dos benefícios e prazeres que poderíamos ter nesta vida. Essa dúvida é o grande passo para a armadilha da inviabilidade da arte de sonhar com as delícias do Jardim do Éden.

Estamos tão longe de tantos mitos que nos trazem ensinamentos sobre a arte de saber tecer fio a fio o bom viver. Como sugerido no ensinamento de Cristo no gnóstico Evangelho de Tomé que nos diz que o reino do pai e, ousadamente acrescentamos, o reino da mãe (mães Marielles e Rosas, Dandaras e Marias, pai Lenin e Marx, Che e Chico, Plínio e tantas outros e tantos outras), se espraiam ou poderiam espraiar-se por sobre a terra, mas o ser humano não os vê e sequer desconfia que possam existir.

* Elane Correa é doutora em Ciências Sociais/Antropologia, professora do IFBA e bruxa nas horas vagas.

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