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Artigo de Rafael Vieira Nunes*.

Nos dias que seguem o crime ambiental de Brumadinho, é visível a forte disputa ideológica de narrativas sobre o que ocorreu no sul de Minas e quem fará a gestão do desastre. Entretanto, as populações próximas das barragens ainda vivem em angústia por conta da falta de informações precisas e confusão dos poderes envolvidos.

Enquanto a base governista atua em tom demagógico ao convocar tecnologia israelita como solução de um problema complexo, o lado oposto à Bolsonaro pauta a crítica moral, esquecendo-se que a própria gestão Pimentel, por exemplo, era extremamente permissiva ao licenciamento das mineradoras – principalmente a Vale, ou então esquecem que Dilma articulou um novo código de mineração, muito mais permissivo e liberal, trabalho finalizado de forma eficiente por Temer.

A polarização entre o discurso de Bolsonaro e sua oposição, no momento, é de aparências. Pouco ou nenhum encaminhamento prático foi dado pela estrutura de governo tampouco pela oposição – é como se no crime de Brumadinho, importasse mais ganhar o debate acerca de quem aparenta ter mais culpa – ou de quem tem mais razão política e acadêmica. Simplesmente parece não importa o fato do povo sem notícias e sem possibilidade de enterrar seus conhecidos e parentes e o pior, sem instrução e orientação para agir no caso de novos desastres e na recuperação deste.

As duas retóricas inflamadas, espólio das eleições de outubro, escondem a necessidade de se encaminhar soluções práticas por meio de um debate racional. Não existe mais espaço para erros em Brumadinho e nas outras barragens de Minas Gerais e do Brasil, o risco de se perder mais vidas é iminente. O Brasil precisa repensar sua forma de extrair da natureza.

 

Três eixos da gestão do desastre não apresentam soluções

O exercício de pensar formas de extração mineral que não destruam ou esterilizem a vida, é constantemente interrompido pelo festival de desinformação que três grandes eixos promovem em torno do rompimento da barragem em Brumadinho:

I –  A base do governo continua a agir ideologicamente, provocando tensão entre os trabalhadores (servidores públicos) que estão com salários atrasados e enfrentando condições duríssimas no trabalho de resgate. O socorro dos Israelitas é bem vindo, no sentido de mais braços trabalhando, mas veio com arrogância e aparente superioridade tecnológica e de experiência, o que na prática não se confirmou. Ainda no governo, não se sabe exatamente a composição do Gabinete de crise, as declarações são dadas por agentes políticos e que claramente não sabem sobre o tema, mesmo com agências estatais competentes à disposição, como o Serviço Geológico Brasileiro ou mesmo outras instâncias do Departamento Nacional de Produção Mineral ou a recém formada Agência Nacional de Mineração. Ainda na base do governo, observa-se pouca articulação com um dos maiores centros de conhecimento em engenharia de minas, a Universidade Federal             de Ouro Preto. A autoridade máxima do meio ambiente, Ricardo Salles, falido moral e tecnicamente, claramente envolvido com a mineração (conforme consta a sua condenação em primeira instância pela justiça de São Paulo), não possui condições intelectuais nem capital político para propor soluções práticas para a situação.

II – A grande mídia, da qual Globo, Record, Folha e outras fazem parte, continuam a sua conveniente central de produção de polêmicas vazias. As pautas morais, as que falam com o emocional, são evidentes: abatimento de animais com fuzil; cobertura de desgastes entre oficiais Mineiros e Israelenses; dramas individuais que dão muito ibope e centenas de imagens de cadáveres; helicópteros; cobertura ao vivo; gráficos macabros e sem escala de medida. Muita ressonância, pouco serviço social de informação, ou mesmo uma descrição mais clara e científica do que realmente está acontecendo em Brumadinho.

III – A Vale e sua diretoria se negam a disponibilizar seu departamento científico, provavelmente porque o mesmo nem existe. Se existisse, estaria em monitoramento constante de parâmetros da água e dos sedimentos do rio, antecipando em alguns dias o desastre. Também teria posto em prática, ao lado das pessoas próximas a barragem, um plano prático de monitoramento e prevenção de desastres, conforme as agências reguladoras e órgãos licenciadores exigem a algum tempo. A empresa também nega qualquer possibilidade de intervenção em sua diretoria. Preocupada com suas ações, um grande acordo de leniência e de gabinete com o Ministério Público e base governista já foi formado: um suave plano de desativação de algumas barragens de talvegue e com alteamento a jusante – as do formato de Brumadinho e Mariana. Entretanto o tal plano se restringe a região do quadrilátero ferrífero, sendo que existem centenas de barragens em estado semelhante no Brasil.

 

População local de Brumadinho e região sofre com a desinformação

Os três núcleos gestores do desastre não conseguem (ou não tem interesse em) dar solução prática para a resolução dos problemas da região e seus moradores. A estratégia destes três eixos é a mesma: uso da desinformação.

A Base governista trouxe uma falsa promessa de Israel: não se nega aqui a ajuda de nenhum povo, o problema é que argumentou-se que os Israelenses traziam tecnologias inovadoras quando na verdade, o que traziam em suas bagagens e aviões, eram tecnologias mundialmente dominadas, inclusive pelo Brasil. Israel propôs o rastreio de telefones celulares, coisa que as companhias de telefone locais já haviam feito com precisão para mais de uma hora antes do rompimento. Trouxeram um equipamento de sonar, cuja tecnologia é minimamente dominada por qualquer país marítimo do mundo – em todo caso essa tecnologia serve para matrizes homogêneas (como a água do mar), não para um mar de lama, escombros e, tristemente, cadáveres. Israel também se valeu de uma moderna sonda térmica – que identifica calor de corpos soterrados a uma precisão de até 30 metros, porém, por motivos óbvios e lamentáveis, a sonda teve pouco ou quase nenhum uso, visto que já não existia diferença de temperatura entre os corpos e a lama.

As declarações do ministro de desenvolvimento são de ignorância assustadora, o que nos faz tomar dúvida imediata dos gabinetes de crise formados em Minas e Brasília. Enquanto informações genéricas ou inúteis como “rio avança em uma velocidade menor que a normal (sic)” ou “lama não chegará ao São Francisco”, as reais informações estão sendo perdidas, ou escondidas.

Sabe-se que as barragens de rejeito não são formadas por uma única substância homogênea – ali se encontram diferentes combinações de minérios com diferente densidades. Enquanto observamos a lenta lama avançar no Paraopeba, sedimentos finos e de baixa densidade, como os argilominerais já desceram Paraopeba abaixo – estes sedimentos ainda tem o potencial de provocar interações ecológicas e químicas desconhecidas nos ecossistemas que passam. Monitorar o fluxo destes sedimentos seria uma das tarefas prioritárias de um gabinete de crise – entretanto tal informação inexiste para um debate público.

O senso comum direciona nossos olhares apenas para a grande mancha de lama, torcendo para que ela subitamente pare – mas esse é um dilema ecológico típico do novo século: aquela lama densa, tóxica, ainda terá que ser removida ou dragada de alguma forma, e quando decantar, exterminará uma miríade de organismos da fauna e flora aquática. É por esse motivo que gabinetes de crise são formados, para atuar junto a população em problemas de ordem prática que já apareceram em Mariana e retornarão a aparecer em Brumadinho.

A mídia continua em sua louca disputa ideológica com Bolsonaro – enquanto o liberalismo burguês digladia com o neofascismo, o povo está a míngua. Obviamente se tratam de interesses financeiros de grandes emissoras (quem será o grande porta voz do governo, quem deixará de receber financiamentos?) porém não se vê veiculação de informação mínima de serviço social aos moradores, de informações práticas de deslocamento e formas de agir nos próximos dias. Grandes emissoras como Globo e Record poderiam criar canais reais de comunicação e divulgação de informações úteis para a população local. Entretanto tudo é meticulosamente mostrado nos plantões e jornais que geram mais audiência.

O mesmo se aplica para a veiculação da mídia das informações do licenciamento ambiental – ela é completamente seletiva e não aberta a população. Por mais que um estudo de impacto ambiental esteja presente na secretaria de meio ambiente mediante requisição, a mídia deveria ter papel fundamental ao trazer aquelas informações para o grande público.

A Vale praticamente vem confirmando sua posição de assassina confessa, mas sem escrúpulo algum. Logo depois de Mariana, a mídia veiculou o óbvio: a Vale foi doadora de uma grande quantidade de políticos – estes trabalharam incansavelmente para o afrouxamento do código de mineração e do licenciamento ambiental. Em época de fundos públicos de campanhas, a Vale tenta mostrar arrependimento institucional, mas como todos sabem, claramente faz militância contra o licenciamento ambiental.

Ainda no eixo da Vale, observamos uma fetichização da mídia (principalmente Globo) e do ministro da casal civil, Onyx Lorenzoni, sobre a queda de ações da empresa. O ministro, tão bruto nas entrevistas diárias, comentou de modo delicado que o Estado não haveria de intervir na empresa (mesmo que haja brecha legal e institucional para tal. O mesmo fez a Globo. A este ponto, já deve ser possível rastrear os abutres que comprarão as ações da empresa em baixa, para realizar mais uma negociata em cima da vida de pessoas. Discute-se aqui as ações da empresa enquanto as pessoas nem mesmo foram retiradas da lama.

 

O que sobra da disputa destes grandes grupos: o futuro da exploração da natureza no Brasil precisa ser discutido pelo povo

Os tempos em Brumadinho ainda serão difíceis por longos anos, soluções práticas que permitam a emancipação da decisão popular na gestão deste desastre são essenciais. Primeiramente, deve-se pensar na participação popular e militante na avaliação do licenciamento ambiental. Apesar de licenciamento de grande porte estarem sujeitos a apreciação do Conselho Estadual de Meio Ambiente, empreendimentos que possuem potencial de retirar a vida das pessoas e da biodiversidade devem passar por ampla consulta e auditoria popular desde os primeiros meses do seu planejamento, instalação e operação.

Com a participação popular e militante no processo de licenciamento, absurdos como o refeitório e outras estruturas administrativas posicionadas a menos de um quilômetro abaixo da barragem, nunca seriam aceitos pela população. Em Congonhas, próximo de Brumadinho, a população já vive terror constante, visto que a cidade está literalmente abaixo da barragem, colocando em risco pessoas e um patrimônio cultural inestimável, as obras de Aleijadinho.

Comunidades a jusante (abaixo) do rio Paraopeba sofrerão com água tóxica nos próximos meses – isso inclui municípios inteiros e comunidades indígenas, que atualmente estão sem acesso a qualquer instrumento de monitoramento da própria água que bebem.

O governo pode e deve articular a Universidade Federal de Outro Preto e outras instituições referência em engenharia de minas e barragens de modo a alimentar de informações científicas a gestão de desastres.

A Vale deve sofrer intervenção, minimamente, de um comitê misto de gestão de crises e que possa definir, com voz popular, um conselho gestor compromissado. Qualquer que seja a formação de um conselho diretor da empresa, esta deve colocar como meta encontrar soluções mais possíveis e menos perigosas de extração mineral, assim como já vem sendo feito em diversos locais do Brasil que fazem extração mineral de precisão.

As pessoas devem ser informadas quanto a toxicidade do rejeito mineral com as quais irão entrar em contato nos próximos anos. Sobretudo, dado o processo de flotação inversa realizado em barragens, com uso de quantidades enormes de detergente, a lama invariavelmente terá um alto grau de toxicidade.

Finalmente, deve-se pensar em como o conhecimento disponível pode ser trabalhado em sinergia com a população local, que deve ter centralidade nas decisões de gestão da Vale, pelo menos na região atingida. Tais decisões devem se pautar não só em minimização de desastre, mas em buscar e apontar soluções para uma mineração menos bruta e tosca no Brasil, não aceitamos os nossos mortos para servir de commodity a mercados internacionais e o que é pior – ao lucro de pouquíssimos.

A inépcia do governo, a ganância da mídia e o ressentimento da esquerda anti-Bolsonaro não podem permitir que nós soframos por mais Brumadinhos, Marianas e Museus Nacionais. Nosso conhecimento não pode ser enterrado com a lama!

* Rafael Vieira Nunes
Biólogo

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0 resposta

  1. Bravo, Rafael. Muito bom seu artigo. Técnico e politizado, na medida certa. Sugiro que você dê continuidade a escrever aqui sobre essa temática, criando uma série de artigos. Brumadinho ainda continuará por muito tempo entre nós.

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