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É racista a criminalização da maconha no Brasil

Por André Barros*

A semente de maconha foi trazida, da África para o Brasil, às escondidas, pelos escravos negros que tinham o hábito de fumar a flor da planta fêmea, onde se concentra o THC (Tetrahidrocanabinol).

O Brasil foi o primeiro país do mundo a editar uma lei contra a maconha. Em 4 de outubro de 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro penalizava o “pito de pango”, denominação da maconha, no § 7º da postura que regulamentava a venda de gêneros e remédios pelos boticários:

“É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.” (Mott in Henman e Pessoa Jr., 1986)

Quando aqui chegou, em 1808, a família real aproveitou a mão de obra dos capitães do mato para criar a polícia brasileira, época em que esses não mais serviam aos fazendeiros devido aos altos custos das recompensas. Esta função principal da polícia veio a substituir o que faziam os seus antecessores, caçadores de escravos privados, no sentido de manter os negros na “linha”. Os rituais das religiões africanas, dentre os quais fazia parte o consumo da maconha, eram proibidos em lugares públicos.

Depois da metade do século XIX, chegava ao Brasil o discurso dos psiquiatras lombrosianos. Esses criaram a teoria do ‘criminoso nato”, sendo apontadas essas tendências nos negros e em toda a sua cultura e hábitos. Com a abolição da escravatura, essa teoria racista caiu como uma luva, pois, os que antes eram escravos, passaram a ser “criminosos natos”.

A teoria de Rodrigues Dória, psiquiatra brasileiro, professor de Medicina Pública de Direito da Bahia, presidente da Sociedade de Medicina Legal, ex-presidente do Estado de Sergipe, é emblemática: a partir de um discurso racista supostamente científico, ele associava o consumo da maconha, hábito característico dos criminosos natos, à vingança dos negros “selvagens” contra os brancos “civilizados” que os escravizaram. Vejamos um fragmento de seu texto elitista e etnocêntrico, pretensiosamente civilizado, discriminando a cultura, a religião e o maravilhoso diálogo rimado da diversidade cultural brasileira dos negros, nativos e pobres, associando tudo, inclusive a criatividade, ao uso da maconha:

“Entre nós a planta é usada, como fumo ou em infusão, e entra na composição de certas beberragens, empregadas pelos “feiticeiros”, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos “candomblés” – festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes, e que lhes herdaram os costumes e a fé – é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas. Em Pernambuco a erva é fumada nos “atimbós” – lugares onde se fazem os feitiços, e são frequentados pelos que vão ai procurar a sorte e a felicidade. Em Alagoas, nos sambas e batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos, usam a planta, e também entre os que “porfiam na colcheia”, o que entre o povo rústico consistem em diálogo rimado e cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela deixa ou pelas últimas palavras de contendor”

A sociedade disciplinar, surgida na Europa, no século XIX, com seu discurso da “periculosidade”, que preconizava a criminalização e controle das chamadas “classes perigosas”, chegava ao Brasil. Imbuídas desses preconceitos surgem novas ciências como a psiquiatria, a psicologia, a criminologia e a sociologia.

Com a abolição da escravatura, sem terra e trabalho, os antigos escravos passaram a ser considerados indivíduos de comportamento desviantes e criminosos natos. De certa forma, o discurso lombrosiano serviu para eximir o Estado de criar políticas sociais para absorver esta mão de obra ao justificar a implantação de novas políticas punitivas. O hábito de fumar maconha seria mais uma característica do criminoso nato, juntamente com todas as manifestações culturais dos ex-escravos. Maconheiro, macumbeiro, vadio, mendigo, prostituta, um dicionário racista e preconceituoso era usado pelo poder da elite dominante para vigiar e punir os pobres.

Os negros passaram a ser considerados criminosos natos após a escravidão, de escravos passaram a ser encarcerados. Daí a construção do estereótipo racista estabelecendo a cor da pele e o clima como características naturais e propensão à formação do criminoso. Como a maconha era consumida pelos negros, a conduta foi associada a comportamentos característicos de criminosos, tratando seu consumo como desviante e característica nata de negros marginais e vadios que não queriam trabalhar.

Um ano antes mesmo da Constituição da República, entra em vigor, em 1890, o Código Penal Republicano, criminalizando a capoeiragem, que englobava todas as manifestações culturais dos negros como o jongo, samba, religiões e o hábito de fumar maconha. A capoeira foi descriminalizada somente no Código Penal de 1941. Porém, neste mesmo código, em seu artigo 281, um hábito passa a ser expressamente criminalizado: fumar maconha.

Na II Conferência Internacional do Ópio, em 1924 em Genebra, o psiquiatra Dr. Pernambuco, delegado brasileiro, afirmou, para as delegações de 45 outros países: “a maconha é mais perigosa que o ópio”. Essa Conferência influenciou radicalmente a criminalização da maconha no mundo.

Nos anos setenta, a maconha passa a ser consumida pela classe média branca e encarada como ato de rebeldia. Inicialmente, mais preocupados com os guerrilheiros, a ditadura não se importou tanto com a sua punição. Mais tarde, as históricas práticas punitivas contra os negros, que fumavam maconha, passam a ser aplicadas também na classe média branca. Como o sistema penal brasileiro foi historicamente construído para criminalizar negros e índios pobres, a prisão de pessoas brancas de classe média encontrava resistência no judiciário de sua cor. A Jurisprudência diferenciava os consumidores dos traficantes, mesmo sem o amparo da lei que os equiparava, para livrar a classe média da cadeia. Assim, em 1976, entrou em vigor a lei 6368 que distinguia o consumidor do traficante, estabelecendo, para o primeiro, uma pena máxima de 2 anos de detenção, enquanto, para o segundo, de 15 anos de reclusão. Com essa legislação, consumidores brancos conseguiam escapar da prisão com a detenção, afiançável pelo delegado, enquanto os negros continuavam sendo encarcerados como traficantes pela reclusão, inafiançável até pelo juiz.

Por isso, não devemos cair no discurso hipócrita do que vai acontecer se a maconha for legalizada, mas sim buscar conhecer o “porquê de sua criminalização”, o racismo.

Referências Bibliográficas:

ADIALA, Júlio César. O Problema da Maconha no Brasil: Ensaio sobre Racismo e Drogas. IX Encontro Anual da ANPOCS, 1985.

BARROS, André. A Acumulação do Poder Punitivo no Brasil. Dissertação de Mestrado em Ciências Penais. Rio de Janeiro: UCAM, 2006.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Vozes:Petrópolis, 1986.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2005.

BATISTA, Nilo. ZAFFARONI, Raul. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro, Revan, 2003.

NEGRI, Antonio. COCCO, Giuseppe. Glob(AL). Biopoder e luta em uma América Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005.

VIDAL, Sérgio. Cannabis Medicinal: Introdução ao cultivo indoor. Salvador,Edição do autor, 2010.

* André Barros é advogado da Marcha da Maconha e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ

Fonte: coletivoculturaverde.wordpress.com

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