Dossiê CNAPS – Comissão Nacional de Análise de Política e Sociedade
Proposta de resolução apresentada à CNAPS em abril de 2025
“Deste momento em diante, o declínio da América acabou”, disse Trump na abertura de seu discurso de posse, tornando-se assim o primeiro presidente a reconhecer que os EUA são uma potência decadente. Iniciou o governo desferindo ameaças a muitos países, inclusive aos maiores aliados, para tentar restaurar seu poder imperialista de ditar a ordem mundial sem contraponto. Busca insuflar a extrema-direita no mundo enquanto esgarça os limites da democracia liberal nos EUA com métodos neofascistas, concentrando poder como um líder autocrático.
Trump passou todos os recibos de que os EUA se veem confrontados pela polaridade concorrente liderada pela China. Alardeou que pretendia trocar as guerras armadas pelas tarifas comerciais para impor os interesses dos EUA e acumular crescimento e força interna. A fantasia pacifista tem se mostrado um fracasso, mas a guerra comercial está a pleno vapor, gerando forte turbulência no comércio internacional e previsão de inflação e recessão nos EUA. Esses efeitos podem se espalhar e atingir os parceiros comerciais mais expostos ao vaivém das tarifas, agravando a crise do capitalismo. Entre vários recuos, acirramentos e ameaças e demonstração de falta de planejamento, assistimos à aceleração da decadência dos EUA como potência hegemônica.
A neutralização dos pesos e contrapesos da democracia liberal como método neofascista
Há diversos e preocupantes sinais de avanço do neofascismo no governo Trump, que é de extrema-direita. A pessoa de Trump e diversos de seus auxiliares se identificam com os princípios neofascistas (inclusive no gestual público) e apoiam correntes internacionais dessa vertente, enquanto os EUA são uma democracia liberal que está sendo esgarçada pelos métodos neofascistas. Neste momento Trump reúne os instrumentos para aumentar o ritmo dessa neutralização dos pesos e contrapesos democráticos, já que tem maioria no Senado e na Câmara, bem como na Suprema Corte, e segue governando por decreto. O movimento radicalizado ‘MAGA’ (Make America Great Again) se constitui numa base popular disposta a apoiar e justificar seu líder carismático independentemente do que ele faça. As redes sociais das big techs, o grande laboratório contemporâneo de contaminação ideológica, colaboram com sua estratégia ao reduzir ou mesmo extinguir os controles internos contra as campanhas de desinformaçãoe discurso de ódio sob a alegação de evitar a censura. Assim, escancaram a avenida virtual para o incremento sem limites das táticas do neofascismo de arregimentação de corações e mentes.
Um dos efeitos mais graves do nacionalismo chauvinista, base do neofascismo, é a designação do inimigo interno, que recebe a culpa de uma suposta decadência moral. Dois deles já foram apontados em campanha e estão recebendo artilharia pesada nas primeiras medidas governamentais: os imigrantes e as ideias tidas como esquerdistas nas universidades e centros de pesquisa importantes. Vários projetos de pesquisa, notadamente aqueles voltados para políticas contra as opressões, políticas compensatórias e de inclusão, questões ambientais, estudos sobre fascismo e neofascismo, bem como sobre a resistência palestina e outros povos nativos, estão tendo recomendação de cessação de financiamento por agências governamentais. Termos e temas como “gênero e transgênero”, “energias alternativas ou renováveis”, “feminismo e machismo”, “LGBTfobia, “políticas de reparação”, “desigualdade”, “cotas”, “Palestina”, “lutas de resistência”, entre muitos outros, estão sendo rastreados nos computadores dos órgãos governamentais. A ordem é o completo apagamento e o cancelamento de programas com essa temática. Além disso, foi expedida para as bibliotecas oficiais uma lista de livros proibidos de aquisição, tidos como de “ideologia esquerdista”, “antissemitismo”, “comunismo” ou mesmo “defesa do terrorismo”, como se fosse uma retomada do período macarthista ao menos em órgãos do governo.
A prestigiosa Universidade de Columbia, que abriga uma cadeira de Estudos Palestinos dentro do departamento de Estudos do Oriente Médio, foi a primeira a ser ameaçada do corte de 400 milhões de verba para pesquisa se não reformulasse esse departamento e demitisse professores, além de cancelar pesquisas e entregar listagens de estudantes que participaram das manifestações em seu campus. Foi lá que se iniciaram os protestos e acampamentos contra o genocídio em Gaza durante o governo Biden. O resultado é que os estudantes estrangeiros da lista entregue, todos com vistos regulares, estão sendo perseguidos, sob a alegação de que a Primeira Emenda, da liberdade de expressão, não se aplica a estrangeiros. Mahmoud Khalill, o primeiro estudante palestino de Columbia preso sob a acusação de “antissemitismo” e “apoio ao terrorismo”, que teve o green-card suspenso e luta contra a deportação, tornou-se um símbolo nos EUA da perseguição aos ativistas, contra o autoritarismo e pela liberdade de expressão dos movimentos sociais.
Na sequência, mais de mil estudantes tiveram seus vistos cancelados e estão em processo de deportação sob as mesmas alegações. Em alguns casos foram detidos e enviados a estados onde os juízes são majoritariamente favoráveis a Trump, como na Louisiana. Diversos pesquisadores e professores estrangeiros também com visto de permanência foram deportados quando voltavam aos EUA de férias, após uma busca em suas redes sociais ou publicações de artigos na Internet contrários às posições do governo Trump. O enfrentamento ao autoritarismo está se construindo: centenas desses estudantes se uniram em um processo judicial para cancelar essa perseguição e reaver seus vistos. Protestos recomeçam em várias universidades e se espalham pelos estados. Diante dessa reação, inclusive de setores do judiciário, Trump segue escalando, ameaçando proibir matrícula de estudantes estrangeiros, o que seria ilegal – mas seu governo autoritário tem atropelado leis e a Constituição.
A Universidade de Harvard também tem sofrido corte de mais de dois bilhões em investimentos públicos em pesquisa e, assim como outras cinco universidades da chamada primeira linha, tem resistido. Trump também lançou a ameaça de revogar a isenção fiscal de Harvard para as receitas provenientes de cobrança de anualidades e recebimento de doações, uma importante fonte de receita das universidades nos EUA. A perseguição às universidades é um dos traços mais alarmantes de governos autoritários. Seus centros de pesquisa em Ciências Humanas costumam ser um dos pilares de resistência contra o avanço do neofascismo.
Outro sinal de erosão da democracia liberal é a submissão dos órgãos de controle do Estado ao autoritarismo presidencial. Trump tem atacado a máquina pública e seus funcionários sob a justificativa de diminuir o grande déficit do governo central, mas o objetivo maior parece ser reduzir a capacidade de atuação das instâncias de controle do Estado sobre o governo, ampliando seus poderes presidenciais. Nomeou provisoriamente o bilionário Elon Musk para o recém-criado DOGE (Departamento de Eficiência Governamental), para, com sua equipe, demitir pelo menos 20% de funcionários em cada departamento, extinguir órgãos e trocar chefias das agências de controle por pessoas de sua confiança. As comunicações entre os funcionários durante o horário de trabalho estão sob escrutínio permanente e cerca de 200 mil deles foram demitidos. Verbas de programas de saúde pública e assistência social, já de alcance restrito, foram reduzidas ou zeradas. A USAID, com seus vários programas de ajuda humanitária principalmente na África (e acusações de interferência em golpes ao redor do mundo), foi extinta, assim como vários outros programas de assistência humanitária. O Departamento de Educação, sob a acusação de espalhar “doutrinação esquerdista”, foi esvaziado, com afastamento de funcionários e retenção de verbas.
Houve reação de alguns juízes, que suspenderam provisoriamente parte das demissões, e recursos à Suprema Corte interromperam o fechamento total da USAID e alguns órgãos, mas sem decisão definitiva, enquanto eles seguem sem recursos. Nem mesmo as agências de defesa e controle como a CIA, a Procuradoria do Estado e a Polícia Federal, acusadas de atuar em investigações persecutórias contra Trump, foram poupadas de cortes, demissões e troca de chefias. Dessa forma, o governo Trump avançou muito na neutralização dos mecanismos formais de fiscalização do governo típicos de uma democracia liberal. O Congresso, onde Trump amealhou maioria nas duas casas, segue silenciado, enquanto Trump governa de modo autoritário, por uma enxurrada de decretos diários.
Negacionismo climático como traço destacado do neofascismo
Outra característica acintosa da extrema direita, acirrada pelo neofascismo, é o negacionismo climático, reafirmado por Trump com a retirada dos EUA do Acordo Climático de Paris, o que já tinha sido feito em seu governo anterior, desfeito por Biden e agora refeito. Porém, a ameaça de colapso ambiental se agrava, já que os atuais controles impostos nas grandes nações poluidoras são claramente insuficientes para conter o aquecimento global dentro dos limites previstos nesse acordo. Com a saída dos EUA e o consequente descompromisso com qualquer meta climática, está escancarado o caminho para que outros países e suas empresas também se neguem a adotar novas medidas, mesmo insuficientes, para reduzir as emissões de gases poluentes, o que já está ocorrendo, assim como as expectativas de compensações aos países dependentes se tornam ainda mais restritas.
Trump tem revogado várias leis de proteção ommercia e ommerc às empresas estrangeiras que quiserem se instalar nos EUA a imunidade com relação a regulamentações e controles ambientais – o que é um acinte ao planeta inteiro. Até mineração em alto-mar foi liberada. Todos os incentivos para as fontes de energias alternativas foram cortados, com mais alarde para o fim dos incentivos fiscais à produção de carros elétricos – depois que Elon Musk já tinha aproveitado esses benefícios para instalação de fábricas da Tesla. Até mesmo a retomada da exploração do carvão como fonte de energia, reconhecidamente pior de todas, tem sido incentivada, assim como o incremento da extração em zonas antes protegidas de petróleo e gás de xisto, que, além de ser altamente poluente, contamina todo o entorno de onde é extraído. Diante de um ommercia que adota o ommercial lema “Perfure, baby, perfure!” para retribuir o apoio da indústria petrolífera e de hidrocarbonetos, o risco para o mundo aumenta exponencialmente.
A sociedade civil estadunidense não aderente aos princípios da extrema-direita parece estar despertando da letargia ommer dos primeiros discursos e atos de Trump e dos seguidos atentados aos princípios liberais democráticos. Várias manifestações têm ocorrido simultaneamente nos cinquenta estados e em diversas capitais europeias. Se esse movimento se ampliar, considerando que as pesquisas já apontam desabamento dos índices de apoio a Trump ommer do conjunto de suas medidas, é possível que o governo seja forçado a rever seus rumos. Arrisca perder o controle do ommerci nas eleições de meio-termo em novembro de 2026, possibilitando a partir daí a rejeição de suas medidas mais extremas. Isso caso a implantação de mecanismos autoritários nas instituições não consiga fazer o ommerci maior de subjugar o Congresso e a Justiça Federal ao já exacerbado Poder Executivo. Trump já fala abertamente em buscar formas de se candidatar a um terceiro mandato e demitir o ommercia do FED (o Banco Central de lá) – ambas as possibilidades tidas como inconstitucionais. É característica dos líderes autoritários a ommercia de se perpetuar no poder sem amarras.
Guerra comercial e desestabilização dos mercados: aprofundamento da crise e decadência
Na análise de economistas de diversas tendências, o governo Trump se tornou um fator de desestabilização dos EUA e mundial, fazendo pairar a ameaça de recessão, o que aprofunda a crise estrutural do capitalismo. O caos provocado no comércio exterior pela imposição por parte dos EUA de tarifas punitivas, calculadas de maneira arbitrária para supostamente responder ao déficit comercial dos EUA com cada país (e devidamente retaliadas pela China, chegando a mais de 120% de ambos os lados) foi seguido por grandes turbulências no mercado financeiro. As maiores perdas foram justamente das empresas estadunidenses espalhadas pelo mundo, como Apple, Amazon e Nvidia. Evidentemente as tarifas não ficarão nesse patamar nem para a China, pois alguma negociação é imperiosa, mas a partir de 35% elas já inviabilizariam o comércio com os principais países fornecedores de manufaturas e insumos aos EUA. Dada a globalização imperialista das cadeias produtivas e de insumos, o risco de crise sistêmica contaminou o mercado financeiro, gerando pesadas perdas e alarmando a Casa Branca. Mas a gota d’água parece ter sido um movimento de forte venda dos títulos da dívida estadunidense, até agora tido como o porto-seguro dos investidores diante das crises cíclicas.
Mesmo que Trump tenha recuado parcialmente três dias depois do suposto “liberation day” (também chamado de “devastation day”), adiando por 90 dias as “tarifas recíprocas”, exceto para a China, e mantido “apenas”, por ora, a tarifa básica global de 10% e as anunciadas anteriormente de 25% (para automóveis, autopeças, aço e alumínio), uma boa parte do estrago já estava feito. O mercado financeiro pode até ter dado um salto de alívio, mas no dia seguinte, ao mensurar o alcance das tarifas remanescentes, o prosseguimento da guerra tarifária com a China e as consequências previstas para a economia dos EUA – inflação e recessão – os índices das principais bolsas derreteram novamente no mundo inteiro. Foi quebrada a confiança do mercado no governo dos EUA; seus movimentos erráticos deixam entrever que não há um plano econômico consistente a sustentar suas ações, e esse ambiente de negócios volátil não atrai os investimentos que Trump espera.
Obviamente, os oligarcas que cercam Trump não estão dispostos a fazer sacrifícios patrióticos de seu patrimônio; assim, houve e continua a haver uma forte pressão para se consertar o estrago dentro do possível. O recuo na isenção de tarifas de smartphones, semicondutores, computadores e suplementos eletrônicos necessários para esse setor parece ter sido feito sob encomenda para salvar a Nvidia e especialmente Apple, a qual tem 88% de sua produção na China (outros quase 12% na Índia e uma produção pequena no Brasil na fábrica chinesa Foxconn exclusiva para o mercado brasileiro). O Iphone, seu principal produto, duplicaria de preço nos EUA se tivesse que pagar a tarifa de importação majorada e triplicaria se fosse montado lá, com componentes vindos de seis países, sendo cerca de 70% deles fabricados na China. Mas o anúncio foi seguido por uma advertência de que “a China não pode comemorar”, pois esse setor terá uma taxa específica e não está isento da tarifa de 20% punitiva ao alegado descuido chinês com o combate à fabricação da droga fentanil.
A equipe de Trump, tida como despreparada e bajuladora pelos críticos, parece não levar em conta que o comércio exterior está formatado pela globalização das cadeias de suprimento e insumos, estimulada pela nova ordem construída pelo imperialismo estadunidense após a Segunda Guerra. Os Estados Unidos na época se propagaram como “o país mais favorecido e gerador de prosperidade” e, para estimular o dólar como padrão no comércio, abandonaram o protecionismo (que seria “coisa de país comunista”, como passaram a dizer) e capitanearam esse processo. As cadeiras produtivas e de insumos se espalharam por diversos países para aumentar a taxa de lucro do capital, explorando mercados de trabalho desregulados para intensificar o ganho de mais-valia, beneficiando-se também do ganho cambial ao pagar salários em países com moedas desvalorizadas.
Os objetivos alardeados por Trump de perseguir superávit comercial e reindustrialização afiguram-se evidentemente inexequíveis nos EUA no presente estágio do capitalismo. A tática do lançamento de ameaças e chantagens aos parceiros comerciais poderia funcionar em um mundo unipolar. Mas no mundo atual, com a ascensão de um poder imperialista concorrente, a “tática do valentão” pode acelerar a decadência do império estadunidense se a oportunidade de contraponto for bem aproveitada pela China e seus parceiros. Igualmente, caso ações efetivas de reação forem construídas em regiões que são alvo dos ataques do imperialismo dos EUA, como a América Latina.
A reunião da CELAC em Honduras em abril e o encontro dos BRICs ampliado em julho no Brasil podem ser instrumentos efetivos para a construção de uma estratégia de contraponto à crise aprofundada pelo presidente dos EUA. Na sequência, a China intensificou contatos e negociações na Ásia, firmando acordos importantes com o Japão, Coreia do Sul e Vietnã, além de tratar de procedimentos comuns no comércio com a União Europeia – inclusive recebendo a visita do Primeiro-Ministro da Espanha. Está sendo erguida uma nova ordem não só no Comércio Exterior, como nas relações internacionais, com o tensionamento agressivo provocado pelos EUA em várias áreas e regiões gerando, como efeito colateral, oportunidades para alavancar a ascensão da China como potência imperialista.
Em 2001 a China entrou para a OMC e tem intensificado extraordinariamente sua industrialização, passando a ser um dos maiores compradores de matéria prima e o maior exportador de produtos manufaturados – exporta um terço da manufatura mundial, 15% dos quais para os EUA. As condições favoráveis da alta especialização do mercado de trabalho chinês a salários relativamente mais baixos e os estímulos do planejamento industrial do governo, além de um mercado consumidor em ascensão, atraíram o capital estrangeiro em busca de condições vantajosas de produção.
A China serviu-se da abertura do mercado dos EUA para ampliar seu superávit. Construiu oportunidades com parceiros comerciais principalmente na América Latina e na África em relações chamadas por ela de “ganha-ganha” para investir em infraestrutura e importar matéria prima e produtos agrícolas. Ao ampliar os aportes estatais em pesquisa e desenvolvimento, atraiu a instalação de empresas de alta tecnologia, superando a dependência em vários setores, inclusive de semicondutores para Inteligência Artificial, apesar do boicote promovido pelos EUA à Huawei e a proibição de exportação dos chips especializados para IA da Nvidia, com fábrica em Taiwan. Além disso, a China estrategicamente potencializou sua carteira de reservas internacionais com altos valores em dólar e títulos da dívida dos EUA, o que lhe confere forte poder de interferência no mercado financeiro global.
Trump parece estar obcecado por essa disputa ao constatar o avanço da China em contraponto ao aumento do déficit comercial dos EUA – que, entretanto, detém superávit de serviços. Ele age como esse processo não fosse previsível pelo papel assumido pelo império estadunidense como impulsionador da mundialização do capitalismo em seu estágio avançado. E agora, diante do comércio inviabilizado por ora com seu principal concorrente por tarifas que se tornaram de fato sansões, Trump vê a China recorrer à combalida OMC, aparecendo ao mundo como a principal defensora do livre comércio, enquanto os EUA surgem como propagadores do protecionismo generalizado típico de economias fechadas. O plano tosco de Trump trata a economia do país como se fosse possível forçá-la a retroceder ao tempo e aos métodos do enfrentamento da crise de 1929. Naquela época foram tomadas medidas fortemente protecionistas que também geraram retaliações gerais, mas as cadeias de produção ainda não estavam globalizadas – e a crise se aprofundou. Agora Trump almeja criar superávit com o resto do mundo como se fosse uma questão de orgulho nacional, mas sem planejamento estatal (que seria “coisa de país comunista”), política industrial mínima ou ao menos previsibilidade, portanto com chances muito escassas de funcionar.
Movido pela promessa de retomada do emprego industrial, Trump busca também contemplar os trabalhadores estadunidenses de nível médio, principalmente nos estados do chamado “cinturão da ferrugem”, que majoritariamente votaram no republicano sonhando com o retorno dos empregos industriais bem remunerados, enquanto trabalham por baixos salários (para quem não tem formação) no setor de serviços ou se expõem à contaminação da extração de petróleo e gás de xisto do solo. Entretanto, o setor industrial perdeu muito dos empregos médios, substituídos em grande medida pela acelerada automação, restando principalmente os empregos altamente especializados da engenharia, controle de qualidade e desenvolvimento de tecnologias, que nos EUA pagariam salários mais altos.
Além da pressão das empresas americanas com fábricas na China, Trump tem sido tensionado por grupos de seus maiores eleitores, como os exportadores do agronegócio e os produtores de petróleo do Texas. Estes estão assustados com a queda abrupta do preço do petróleo diante do risco aumentado de recessão. Já para o agronegócio a situação pode piorar muito para alguns de seus maiores de doadores de campanha – os produtores de soja e milho dos estados em que Trump venceu. Tendo a China como seu maior importador de grãos, o fluxo de exportação desses produtores está paralisado pela tarifa retaliatória, enquanto a China já está aumentando as compras do Brasil, o maior produtor mundial de soja, que também tem aumentado as exportações de proteína animal.
Diante do estrago generalizado, já houve sinais de busca de negociação, mas a retórica das ameaças e a tática do “big stick” podem dificultar muito qualquer rearranjo. Se o governo Trump insistir com a guerra comercial como panaceia econômica, o acirramento da crise do capitalismo poderá ser realmente de grandes proporções. Isso se ele não sofrer um impeachment (o que seria possível apenas caso haja perda a maioria no Senado e na Câmara) para sejam preservados os altos interesses do capital. Mas, mesmo que haja recuo diante das crescentes pressões internas, a confiança do mercado e da sociedade já terão sido quebradas, gerando instabilidade e aprofundamento da crise.
Caem as máscaras do autointitulado pacificador: as guerras continuam, outras ameaças despontam no horizonte
Trump vem alardeando desde a campanha que acabaria com todas as guerras em que os EUA tivessem parte ou estivessem financiando e acusou Joe Biden e Kamala Harris de estarem a ponto de levar o mundo a uma terceira guerra mundial. Essa política já está fazendo água com as ameaças de bombardeio ao Irã e ataques aéreos ao Yemen, contra os Houthis. No discurso de posse Trump disse que não queria ser avaliado pelas guerras que venceu, mas sim por aquelas das quais retirou os EUA, e mais ainda, pelas guerras que evitou. Em seu primeiro governo, atacou o republicano George W. Bush pelas guerras do Iraque e do Afeganistão, que levaram a grande desgaste dos EUA. Assinou acordo para retirada total dos EUA do território afegão, o que foi cumprido de maneira desastrosa no governo Biden. Neste segundo mandato Trump acirra essa posição, acenando para sua base de apoio ultranacionalista, contrária à perda de vidas estadunidenses e gasto de dinheiro em guerras supostamente defendendo outros países.
Em sua fantasia de pacifista, vestida antes mesmo de sua posse, Trump conseguiu obter um cessar-fogo provisório em Gaza ao enviar um representante para pressionar fortemente, e em separado, Netanyahu e o Hamas, forçando o fechamento do mesmo acordo que já tinha sido oferecido e posto na prateleira sete meses antes. Porém, Israel, que é a ponta de lança no imperialismo estadunidense no Oriente Médio e parece controlar a política externa dos EUA na região, qualquer que seja o presidente, já puxou seu tapete com a retomada do genocídio em Gaza.
Trump prometeu que acabaria com a guerra na Ucrânia “no primeiro dia de seu governo” (e que foi sendo adiado), mas o que tem feito é ameaçar Rússia e Ucrânia para buscar obter o acordo que ele planeja, tendo fracassado em várias tentativas de cessar-fogo provisório. Mesmo estando disposto a retomar as boas relações que teve com Putin no primeiro mandato, concordando com a maior parte de suas reivindicações sobre a Ucrânia – para a surpresa e indignação da União Europeia – não consegue negociar o fim da guerra em seus termos, pois não lida adequadamente com o que Putin chama de “causas da guerra”. É fato que a OTAN vinha se ampliando em direção à Rússia, mas a invasão da Ucrânia é uma violência continuada que atenta contra o princípio de autodeterminação dos povos, por isso a condenamos.
No governo anterior, Trump procurou um caminho para gastar menos dinheiro na defesa de Israel ao formular e avançar com os chamados “Acordos de Abraão” – de reconhecimento ou normalização de relações entre Israel e vários países árabes, tais como Jordânia, Egito e Arábia Saudita – o plano era isolar o Irã e obliterar a questão palestina ainda pendente. Agora Trump anuncia que retomará a negociação dos Acordos de Abraão, mesmo no auge da crise da questão palestina, com o genocídio em Gaza em curso e o aumento das ocupações e hostilidades na Cisjordânia. Isso significa que Trump pretende desconsiderar a posição anterior dos EUA em defesa da solução dos dois Estados, Israel e Palestina. Essa era uma pré-condição inicialmente colocada pela Arábia Saudita, mas que já tinha substituída por apenas um vago aceno, em nome de seus interesses próprios. Porém, depois da devastação em Gaza a Arábia Saudita anunciou ter retomado a exigência do compromisso com o reconhecimento do Estado palestino para avançar nas negociações.
O horror de destruição e matança em Gaza foi justificado cinicamente pelo governo dos EUA e os aliados da União Europeia como “o direito de Israel de se defender”, com escassos pronunciamentos alertando contra “os excessos”, após mais de 50 mil mortes. São todos cúmplices. Os reflexos na opinião pública desse genocídio, principalmente na juventude, ajudaram a derrotar o governo Biden (que não elegeu sua vice Kamala Harris à sucessão), um aliado incondicional de Netanyahu. Biden foi chamado e genocida e visto pela comunidade de ascendência árabe estabelecida em estados-pêndulos como Michigan como o pior presidente de todos os tempos. Mas agora Trump se esforça para superar seu antecessor também na cumplicidade de genocídio, ao propor a “limpeza étnica de Gaza”, para transformá-la em um vil empreendimento imobiliário. O plano foi rechaçado amplamente pela Liga Árabe, inclusive pelos países listados por Trump para receber os mais de dois milhões de palestinos que seriam forçadamente deslocados – mais um crime contra a humanidade.
Trump queria ser conhecido como um pacificador, mas, além de não conseguir até agora finalizar nenhuma guerra em curso, ameaça iniciar outra com o Irã para supostamente proteger Israel, sob a alegação de que o Irã estaria em rápido curso de desenvolver armamento nuclear. Acabou retomando conversações para buscar um novo acordo nuclear com o Irã nos mesmos moldes do que assinado no governo Obama e que Trump rasgou no primeiro mandato, retomando pesadas sanções. Há limites claros para essas negociações, pois o Irã não aceitaria os termos almejados por Israel, que seria a destruição completa do programa nuclear iraniano, mesmo sob alegação de ter apenas fim pacífico. O Irã alega concordar somente em não atingir o enriquecimento de urânio requerido pela bomba atômica, em troca do levantamento das sanções econômicas. Israel é contra um acordo desse tipo e atua para insuflar os EUA a atacarem o Irã, seu maior adversário.
Trump disseminou outras ameaças – começou apontando para o Panamá, alegando que a China tem controlado o canal, para justificar a intenção de retomá-lo por imposição ou à força. Ameaça também a Groenlândia/ Dinamarca, alegando questões de segurança nacional ligadas à disputa pelo domínio do Polo Ártico. Até o Canadá, um aliado histórico dos EUA, foi ameaçado de anexação e acusado de dependência da exploração comercial dos EUA. Sua visão imperialista de poder desmedido está ancorada em métodos neofascistas que já causaram tantas guerras ao longo da história universal. Da parte de Trump não parece haver nenhuma preocupação com a opinião dos aliados tradicionais como a União Europeia, que só importa na medida dos interesses econômicos dos EUA. Predomina uma aversão a gastos em defesa que supostamente favoreçam outros países, como se fossem divididos em “trapaceiros e otários”, e seu medo atávico é que os EUA sejam feitos de “otários” por supostos trapaceiros como a China, o Canadá, México e a União Europeia. Isso vale tanto para a guerra comercial como para as guerras propriamente ditas.
Na visão de Trump, tem custado muito caro aos EUA manter a combalida ordem mundial construída a partir do fim da Segunda Guerra e reformatada após a dissolução da União Soviética. A pretensão de ser a polícia do mundo, bancando invasões e guerras imperialistas e mantendo organizações como a OTAN para supostamente garantir a segurança dos países europeus, e de fato ameaçar constantemente os adversários, tem dispendido recursos excessivos dos EUA. Mas sua principal motivação para o agressivo protecionismo comercial, a diplomacia da ameaça aos governos estrangeiros e a demonização dos imigrantes é princípio basilar do neofascismo, o nacionalismo chauvinista. Foi popularizando esses princípios que a extrema-direita britânica fez acontecer o Brexit, que trouxe decadência para a economia do Reino Unido (estimativas sugerem uma perda de 4% a 5% do PIB até 2023 em comparação a um cenário hipotético sem o Brexit).
Os EUA não têm amigos, mas sim interesses – assim, Trump escancara as leis do capitalismo para se negar a manter ou enfraquecer os organismos internacionais multilaterais, que são estruturas montadas pela própria supremacia imperialista dos EUA, como a OTAN, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Mundial dos Direitos Humanos. Quanto ao Conselho de Segurança da ONU, responsável por aplicar sanções, os EUA já vinham enfraquecendo essa instância ao exercer com frequência o poder de veto inclusive diante de pontos antes acordados, além de não encaminhar sanções às frequentes desobediências de Israel. Mas agora podem debilitar mais ainda a ONU como um todo ao deixar de pautar suas posições, esvaziando a entidade ao contorná-la.
Sobre a América Latina, as primeiras palavras de Trump foram de desprezo (“eles é que precisam de nós”) e ameaças ao México, à Colômbia e ao Panamá. Mas a primeira viagem do Secretário de Estado Marco Rúbio foi justamente um giro pela América Central, região onde a China tem aumentado sua influência. A ameaça de retomar o Canal do Panamá rendeu de imediato o anúncio por parte do Panamá de suspensão dos acordos com a China, mas Trump quer também a redução ou mesmo isenção de tarifas para as embarcações comerciais dos EUA. Na Guatemala, rota dos imigrantes para o México, os EUA obtiveram a promessa de contenção dos fluxos de imigração. Mas o ganho mais chocante foi o acordo para que o governo de El Salvador seja remunerado por acolher em seu famigerado “Centro de Confinamento do Terrorismo – CECOT”, com capacidade para 40 mil detentos, imigrantes indocumentados retidos nos EUA, sob acusações não comprovadas de pertencerem a grupos criminosos, além de outros oriundos de países com os quais eles não têm acordos de deportação. Ou seja, o presidente de extrema-direita de El Salvador, Nayib Bukele, pretende transformar o país numa grande prisão a serviço dos EUA.
Sendo o Secretário de Estado Marco Rúbio filho de imigrantes cubanos, sua maior pressão foi para que os países da América Latina desistam dos acordos com Cuba para fornecimento de equipes médicas, um programa elogiado pelas Nações Unidas. Com os demais países a pressão foi a para a contenção dos fluxos migratórios e afastamento da China. Sobre a América do Sul, ameaças de tarifas e aparente desconhecimento da região, onde os EUA também seguem perdendo influência para a China. Na Argentina, o presidente de extrema-direita tenta obter um acordo comercial de tarifa zero com os EUA (para o qual teria que sair do Mercosul), mas sequer conseguiu escapar da tarifa comercial genérica de 10% imposta pelos EUA aos demais países da região.
Com relação à OTAN, a mudança de posição dos EUA no governo Trump com relação à guerra na Ucrânia abalou suas estruturas. Sua intenção declarada de obter um acordo para terminar a guerra sem incluir a Europa na mediação, além de defender posições próximas à Rússia com relação ao conflito, esgarçou o papel presumido da OTAN e põe em risco seu futuro. As ameaças feitas durante a campanha eleitoral de Trump de abandono dessa organização “de defesa dos países europeus” foram retomadas com alardeada exigência de que os países membros gastem 5% de seu PIB em defesa. Esse patamar é evidentemente impossível para a maioria dos países europeus, que mal conseguem cobrir os 2% atuais, imersos em déficits internos que têm gerado crises políticas.
Trump chegou a suspender a ajuda militar à Ucrânia, mas a retomou para pressionar a Rússia a assinar qualquer acordo de paz ou mesmo uma trégua que possa ser brandida como uma vitória da negociação dos EUA. Além disso, escancarou os interesses econômicos da guerra ao forçar um acordo com a Ucrânia de exploração de minerais raros usados em alta tecnologia (cuja produção a China detém quase a totalidade) e outras fontes de energia, para supostamente conseguir cobrar a alegada dívida da ajuda militar. É um verdadeiro acordo de lesa-pátria oferecido por Zelenski, que entrega as riquezas minerais de seu país para prosseguir na guerra, tentando neutralizar os interesses de Trump em fazer negócios com a Rússia.
É importante ressaltar que os EUA já atingiram seus objetivos ao incentivar a guerra na Ucrânia: foi quebrada a aproximação entre Alemanha e Rússia tecida em função do fornecimento de gás russo barato, os EUA se tornaram o maior fornecedor de gás liquefeito, muito mais caro, para a Europa, e a Rússia ficou enfraquecida no tabuleiro da disputa de influência imperialista em alguns mercados a partir da aplicação de sanções. Sobretudo, a OTAN cresceu com a adesão de diversos países europeus, entre eles a antes neutra Finlândia. O “efeito colateral”, entretanto, foi o aprofundamento das relações entre Rússia e China, que pactuaram compromissos mútuos e aumentaram bastante seu fluxo comercial após o início da guerra na Ucrânia, fortalecendo assim o maior adversário geopolítico da hegemonia imperialista dos EUA.
Assim, por mais que sua estratégia seja realmente a reaproximação com Rússia, retomando as boas relações que teve com Putin no primeiro mandato, Trump não conseguirá afastá-la da China. Essa parece ser sua intenção ao assumir o lado das alegações de Putin para justificar a invasão da Ucrânia, para espanto e decepção da União Europeia, que esteve junto aos EUA em vultosos gastos nessa guerra por procuração contra a Rússia. Ao ser questionado sobre os BRICS, Trump demonstrou se sentir ameaçado diante da avaliação de que o bloco representa um contraponto ao controle e órbita dos EUA. Ocorre que esse bloco por ora é ainda um projeto inconcluso e com diversas arestas, mas que tem potencial de crescer e fortalecer principalmente a influência do imperialismo chinês.
O principal obstáculo para as promessas de Trump de acabar com a guerra na Ucrânia parece ser a diferença de expectativas – a Trump parece bastar uma trégua na guerra (desde que o anúncio lhe conceda os louros de suposto pacificador), enquanto a Rússia anuncia que somente firmará acordo de paz com a condição de que seus alegados objetivos de segurança sejam satisfeitos. Isso significaria, pelas declarações de Putin, o compromisso de a Ucrânia estar permanentemente fora da OTAN e a posse das regiões russófilas conquistadas na região do Donbass, no leste – cerca de 20% do território ucraniano, incluindo a Crimeia, tomada em 2014 sem reação militar. Porém a Ucrânia, apoiada pela Europa, não aceita ceder as terras invadidas – e a guerra segue enquanto perdura esse impasse.
A busca de resgate da hegemonia e os obstáculos internos: a indústria armamentista ruge
Ainda que se efetivasse, existe um limite para a alegada política de Trump de afastamento das guerras armadas que ele não teria como superar: o poder de pressão da indústria armamentista dos EUA. Em todos os tempos os EUA estão sempre metidos em alguma guerra ou enviando armas a um aliado, e assim centenas de bilhões de dólares são gastos ininterruptamente em armamento pesado. Muito desse dinheiro alimenta toda uma estratégia de um estado profundo que independe do presidente de plantão – que desempenha o mesmo papel de “estimular o gasto com defesa”. Isso significa irrigar os canais de dinheiro e poder que correm para a indústria armamentista, e desta uma parte é reservada para financiar os políticos e instituições que a sustentam politicamente. Trump sabe que não pode contrariar nem a indústria armamentista nem a indústria do petróleo, que ele busca impulsionar a despeito dos alertas climáticos.
Assim, aparentemente Trump esperaria substituir parte do gasto dos EUA com armamentos pelo dispêndio maior dos países da OTAN em defesa. De fato, os países europeus, com exceção da França, não têm produção suficiente de armamentos para bancar sua própria defesa, então a indústria armamentista dos EUA não lhes faltará, assim como guerras não faltarão ao mundo. Não é só nos EUA que a indústria armamentista acumula poder: é notório o caso da Rússia, que também gasta enormes somas em armamento, e esse mesmo gasto retroalimenta o crescimento do país, ajudando, justamente com a indústria do petróleo e gás, a tornar o país resistente às sanções da UE e dos EUA. Os presidentes que não contrariam essas indústrias seguem firmes e fortes no poder.
Entretanto, Trump tem a seu lado um contraponto importante ao poder da indústria armamentista: as chamadas big techs – as grandes empresas de tecnologia e redes sociais, como Google, Meta (do Instagran,Facebook e Whatsapp) e X (ex-Twitter, de Elon Musk). Essas empresas estão entre as de maior capital nas bolsas, seus proprietários figuram entre os maiores bilionários e têm apoiado seu governo ativamente, inclusive com vultosas doações à campanha eleitoral e festa de posse. Trata-se de uma troca de interesses: elas almejam redução do pagamento de altos impostos sobre serviços nos países europeus e buscam ajuda do governo dos EUA contra essa cobrança, além de escaparem da regulamentação sobre conteúdo na internet. Seu feito de maior apoio ao governo é a desativação dos controles de checagem de fake news e discurso de ódio, que são impulsionados pelo neofascismo. No mundo contemporâneo, é possível que o poder descontrolado das big techs seja um ativo tão ou mais influente que a pressão beligerante da indústria armamentista.
A caça ao inimigo interno como bode expiatório: crise da deportação em massa de imigrantes
A crise da deportação de milhares de imigrantes não-documentados de países latino-americanos em condições desumanas é mais uma constatação de que os mais fracos são atingidos primeiro e com mais estardalhaço. Desde seus primeiros dias de governo Trump tem acelerado o ritmo da deportação dos imigrantes indocumentados, que já tinha ocorrido em seu primeiro governo, mas sem esse alarde, e agora essa virou a principal marca de propaganda de Trump II. Agora os deportados são embarcados em aviões militares, para reforçar a ideia de que está sendo travada uma “guerra contra os invasores”, e o fato de estarem acorrentados e algemados reforça a ideia da suposta “periculosidade”. Está sendo usada uma lei do século XVIII, aplicável originalmente a um inimigo estrangeiro invasor durante uma guerra. A cena de imigrantes venezuelanos sendo embarcados algemados e acorrentados para a gigantesca prisão em salvadorenha sob a acusação, sem julgamento ou mesmo qualquer prova, de pertencerem à quadrilha “Tren de Arágua” foi destacada na mídia como aviso aos que pretendem emigrar aos EUA do que lhes pode acontecer. A Suprema Corte suspendeu “provisoriamente” as deportações sem julgamento para El Salvador, mas ainda não há decisão final.
É uma das características mais relevantes do neofascismo, herdada do nazismo, a designação de “inimigos da pátria”, responsáveis pela decadência, logo, deveriam ser aniquilados. Os imigrantes latino-americanos caem como luva no papel de inimigos da vez. Foi criada no imaginário popular a narrativa de eles seriam majoritariamente criminosos que fogem para os EUA na intenção de tomar postos de trabalho dos “legítimos” cidadãos estadunidenses, além de eventualmente cometer crimes quando não atingem seus objetivos. Trump brande pesquisas que apontam que 2/3 da população apoiam a política de deportação dos imigrantes – um suporte que transcenderia seu eleitorado.
Até agora não foi realmente analisada pelo governo a evidente consequência que essa deportação, se for realmente em massa, da ordem de milhões – como foi anunciado em campanha – pode ter para mercado de trabalho dos EUA e para as famílias que se servem dessa mão de obra barata. Estima-se que os EUA tenham cerca de 11 milhões de imigrantes em situação irregular, entre trabalhadores e suas famílias, que ocupam postos de trabalho pouco valorizados pelos cidadãos estadunidenses, como empregadas domésticas, copeiros, garçons e babás, empregados de limpeza e conservação, operários na construção civil (23% desse setor) e em trabalhos pesados na agricultura (chegando a 40% desse setor). Apesar de espetaculosa, a deportação de imigrantes indocumentados não tem como ser rápida nem como ser massiva, dados os altos gastos dos voos de deportação. Alguns efeitos já são sentidos, tanto na redução das tentativas de entrada quanto no sentimento de medo entre os imigrantes, que temem ser denunciados.
Até mesmo imigrantes que tinham obtido o status de asilados políticos temporários no governo Biden, diante da gravidade da situação política em seus países, estão tendo sua permissão revogada, podendo ser deportados a qualquer momento ou pagar multa diária se continuarem nos EUA. É o caso de imigrantes da Venezuela, Haiti e Nicarágua, entre diversos outros países, mas também há afegãos e ucranianos. Recentemente cerca de um milhão de imigrantes considerados asilados, portanto autorizados legalmente a viver e trabalhar nos EUA, foram notificados pelo Departamento de Segurança Interna de que devem deixar o país, independentemente de terem constituído famílias, estarem empregados regularmente ou cursando universidades.
É notório que a grave desigualdade social é a maior motivação do fluxo migratório na América Latina em direção aos EUA. A pobreza, o desemprego e a violência impulsionam a travessia arriscada das fronteiras em diversas partes do mundo, mas também as guerras e a repressão de ditaduras. Não poderia ser diferente nos EUA, com tanta propaganda sobre o “sonho americano de prosperidade”, que tem estimulado por muito tempo a imigração – e agora esse sonho se transfora em pesadelo.
Conclusão: é hora de fazer avançar a resistência ecossocialista e internacionalista à exploração capitalista dos dois lados da disputa interimperialista
A era Trump II escancara o negacionismo climático e desfere mundialmente suas fagulhas de império em declínio, impulsionadas por um governo de extrema-direita que se serve de métodos neofascistas. Os desastres climáticos já estão dando sinais da emergência ambiental, assim como se intensifica a exploração e a perda dos postos de trabalho provocada pelo salto tecnológico do capitalismo avançado, acelerando a precarização e expandindo a desigualdade social. Aumenta o fosso entre os países possuidores de tecnologia avançada e os que estão fadados ao mero papel de exportadores de matéria prima. As distorções de mercado inerentes ao capitalismo globalizado, agravadas pelas desigualdades de desenvolvimento e o incremento da automação, não serão freadas pela guerra comercial.
Nas disputas comerciais interimperialistas é a classe trabalhadora quem mais sofre exploração diante da busca de redução dos custos com o uso de mão de obra mais barata em qualquer lugar do planeta. A burguesia impõe a crescente desregulamentação dos direitos trabalhistas para gerar ampliação de mais-valia, em busca de recuperação de lucros. Com a introdução da Inteligência Artificial nas linhas de produção e em inúmeras atividades laborais, estamos diante de mais uma etapa da acelerada transformação do mundo do trabalho, com o aumento da perda dos postos de trabalho e a acumulação do excedente pelo grande capital e pela burguesia em geral, em especial a transnacional.
Somente com a tomada de consciência dessas novas formas de exploração da classe trabalhadora podemos fazer avançar a resistência anticapitalista. Considerando o aumento da precarização, precisamos encontrar formas alternativas de organização dos trabalhadores, além dos sindicatos tradicionais, os quais mobilizam atualmente menos de um terço do mundo do trabalho. Para melhor alcançar os precarizados e a juventude, nossa linguagem, métodos e documentos precisam ser atualizados em face da nova realidade. Devemos ser pedagógicos na denúncia do incremento dos mecanismos de exploração do trabalho, das táticas de cooptação da extrema-direita e da destruição ambiental inerente ao capitalismo. É hora de ampliar nossa atuação anticapitalista e fazer avançar a resistência ecossocialista e internacionalista.