por Fernando Carneiro
“Venham, senadores, congressistas, por favor, atendam ao chamado.
Não obstruam o vão da porta, não bloqueiem o corredor
porque quem se machucará será aquele que estiver parado.
A batalha que está acontecendo lá fora
em breve sacudirá suas janelas e derrubará suas paredes,
porque os tempos, eles estão mudando”
(The times they are a-changin – Bob Dylan)
Umas poucas palavras sobre Lênin e o leninismo.
“Não há nada mais leninista que defender Lula”. Assim termina o texto de Valério Arcary (dirigente do PSOL) em homenagem aos 155 anos do nascimento de Lênin, um dos grandes do marxismo mundial e o principal dirigente da maior revolução socialista que história já viu: a revolução Russa de 1917. Me pergunto o que Lênin diria ao ouvir esse comentário. Penso, sinceramente, que não o veria de forma elogiosa. Com certeza há formas mais dignas de homenageá-lo.
Lênin desempenhou papel central na revolução russa. Nunca quis que sua contribuição ao marxismo fosse conhecida como “leninismo”, mas a história cunhou essa expressão e ela é amplamente utilizada ainda nos dias de hoje. Lênin sempre foi tido como sisudo, mas os tempos eram difíceis. Amante da música, de jogos de xadrez e de andar de bicicleta, ele enfrentou desde muito cedo a crueldade da tirania czarista. Viu a Primeira Guerra massacrar milhões de russos num conflito que não traria nenhum benefício à classe trabalhadora do campo e da cidade. Lênin revelou o conteúdo de classe da guerra e dedicou sua vida a eliminar a miséria, a opressão e a exploração capitalistas. Sua visão cirúrgica do processo revolucionário foi decisiva para a vitória de Outubro e seus ensinamentos atravessam as décadas e seguem inspirando aqueles e aquelas que sonham com um mundo livre, onde a humanidade possa desfrutar plenamente da vida. E é exatamente isso que o traz ao debate proposto por Valério.
Há alguns anos vários teóricos e revolucionários sinceros se perguntam: qual a nossa postura diante de um governo do PT (Lula ou Dilma) quando este é confrontado pela extrema direita? Os pragmáticos de plantão, Valério entre eles, vaticinam: ou bem estamos com Lula ou bem com Bolsonaro, não há outra alternativa. Além de amplamente questionável do ponto de vista da lógica, esta afirmação, aristotélica até a medula, despreza não apenas a dialética, mas (por óbvio) a própria realidade.
É evidente que existe uma polarização estabelecida na realidade entre o lulo-petismo e o bolsonarismo (ou outra vertente da extrema direita que venha a substituir os Bolsonaros). Mas reduzir a realidade a essa dicotomia é um erro que não podemos cometer. O papel dos analistas burgueses é exatamente esse: afastar qualquer possibilidade de uma alternativa à esquerda dessa bipolaridade entre Lula e Bolsonaro. Eles estão fazendo o que lhes cabe. A nós, revolucionários, cabe ver o que eles escondem.
A realidade é bem mais complexa que esse reducionismo. A esquerda tem papel importante na atual conjuntura. Evidente que não estamos em uma situação confortável. Estamos lutando, e muitas vezes perdendo, para manter direitos há muito conquistados. A precarização do mundo do trabalho e a consequente fragmentação da classe trabalhadora são realidades que interferem diretamente na força da nossa classe. A perda de bases populares dificulta ainda mais nossa militância. Mas é exatamente nessas circunstâncias que temos a obrigação de apresentarmos nosso programa, disputando com os projetos burgueses dominantes, pois nem tudo é derrota. A luta contra a escala 6×1 alcançou uma dimensão extraordinária e saiu de uma postura defensiva para colocar em xeque a burguesia e a extrema direita, numa demonstração vigorosa de que podemos pautar o cenário político e sair do imobilismo. A vitoriosa greve dos trabalhadores em educação do Pará, incendiados pela coragem e determinação dos povos indígenas que ocuparam por semanas a secretaria de educação, forçando o governo Hélder a recuar, é outra prova de que é possível avançar.
A esquerda não pode abrir mão de seu programa, de seu protagonismo e de sua ousadia. A polarização não é uma irrealidade, mas não é absoluta. Precisamos encarar essa situação sem menosprezar o papel da extrema direita, mas também sem supervalorizá-lo. A cada momento temos que lutar para ganhar a confiança política e a consciência do povo. Se abdicarmos dessa tarefa estaremos enterrando qualquer possibilidade de realização da utopia socialista. Tampouco podemos voltar no tempo e desconsiderar que a fundação do PSOL, com todos os seus problemas, foi uma superação programática do PT, na medida em que este se institucionalizou ao extremo, abdicando de qualquer projeto disruptivo em relação à sociedade capitalista.
Valério faz referências ao período que vai de fevereiro a outubro de 1917 para justificar que Lênin teve quatro posturas diferentes: “Tem o momento de paciência para manter a independência e fazer pressão pela esquerda sobre o governo provisório de Kerensky de abril a julho, tem o momento de evitar aventuras e guardar posições sem capitular ao ultraesquerdismo nas Jornadas de Julho, quando ainda não havia condições de lutar pelo poder, tem o momento do recuo e frente única com o governo contra Kornilov e, finalmente, o momento de contra-ataque em toda a linha para a insurreição.”
A pergunta não é se Lênin teve ou não essas nuances táticas, mas o que orientava essas nuances. E a resposta é tão simples quanto óbvia: o que orientava Lênin, desde sempre, mas principalmente quando retornou à Rússia em abril de 1917, era a tomada do poder pelos bolcheviques. Todas as movimentações táticas estavam voltadas para a consecução do duplo objetivo estratégico: fortalecer o partido e tomar o poder. Sua movimentação nunca esteve voltada para a estabilidade do governo provisório, mas para a tomada do poder pelos soviets.
É verdade que os bolcheviques lutaram contra Kornilov, mas daí a intuir que defenderam o governo de Kerensky há uma enorme diferença. Não vou me debruçar muito sobre esse tema porque há vasta literatura, mas é bom repor a verdade. Trotsky, em seu As lições de Outubro afirma:
“Lênin reagiu no começo de setembro, na sua Carta ao Comitê Central: ‘estou profundamente convencido de que admitir o ponto de vista da defesa nacional ou (como certos bolcheviques) chegar a fazer bloco com eseristas, a ponto de sustentar o Governo Provisório, é o mais grosseiro dos erros, pelo qual se dá prova ao mesmo tempo de uma absoluta falta de princípios. Só nos tornaremos defensistas depois da tomada do poder pelo proletariado’. E mais adiante ‘mesmo agora não devemos sustentar o governo de Kerensky. Seria faltar aos princípios. Mas então, dir-se-á, não tem de se combater Kornilov? Certamente que sim. Mas entre combater Kornilov e sustentar Kerensky há uma diferença, um limite, que certos bolcheviques transpõem, caindo no ‘conciliacionismo’, deixando-se arrastar na torrente de acontecimentos’.” (Leon Trotsky, ed. Antídoto, 1979, p. 41.)
Não há que se temer o debate de propostas entre a esquerda. Sou fascinado pelo debate de ideias, mesmo as mais incômodas. Não pode haver ideia interditada e qualquer dirigente, inclusive do PSOL, tem o direito de expor suas ideias de que devemos defender Lula e seu governo ou mesmo participar dele. Mas usar o leninismo para justificar essa posição é, no mínimo, uma desonestidade teórica.
“A flexibilidade tática é a arte da política” diz Valério. Vejamos esse axioma. A história das revoluções, e mesmo da luta revolucionária, está cheia de exemplos de variações táticas. Ao longo de todo o século XX e deste quartel de século XXI, temos assistido a inúmeras adaptações do marxismo a cada realidade local. Defendemos a “liberdade, a igualdade e a democracia burguesas” quando estas estão ameaçadas. Enfrentamos, em Frentes Únicas, o nazi-fascismo ou os governos imperialistas quando estes entram em guerra contra países dependentes; fazemos alianças pontuais com outras organizações operárias, mesmo reformistas, entre outras ações unitárias, e não há nada de errado nisso, pois esta é a essência mesma do ideário marxiano. Nunca tomamos o marxismo como um dogma. Nem Marx quis isso. Em inúmeras oportunidades, ele sempre ressaltou que o marxismo vivo é movimento, é adaptação e mudança no espaço e no tempo. O marxismo se alimenta da realidade mutante. Nunca vai ser igual nem a si mesmo. Trotsky, em seu livro Em defesa do marxismo, afirma que uma coisa só é igual a ela mesma se abstrairmos o espaço e o tempo — ou seja, uma coisa só é igual a ela mesma se ela não existir. O marxismo está vivo porque está em constante atualização; resta sabermos diferenciar atualização de deturpação.
Diz Valério que o “Leninismo não é avançar, avançar, avançar, a qualquer custo, não importando os riscos”. Verdade. Mas mesmo quando retrocedia, o objetivo do leninismo sempre foi avançar. Esse é o espírito de “dar um passo atrás para dar dois à frente”. O que nos leva a crer que a principal “arte da política” não é a flexibilidade tática (já que esta é inerente à práxis política). A arte na política é manter-se fiel aos princípios revolucionários, mesmo quando (e principalmente) tivermos que flexibilizar a tática. Confundir tática com estratégia e estratégia com tática sempre foi um bom caminho para o reformismo.
Valério tem razão ao problematizar sobre o neofascismo de nosso tempo. Acerta ao afirmar que a ameaça da extrema direita nem sempre é uma resposta a uma situação revolucionária (estamos longe disso atualmente). A ascensão de correntes neofascistas, (no plural, pois não é correto desconsiderar as profundas diferenças existentes entre os vários tipos de neofascismo existentes hoje), é uma realidade independente do medo de novos “outubros”. A adesão de segmentos da burguesia ao neofascismo não vem de um medo iminente da revolução e parece indicar que a disputa interburguesa por mercados e pela hegemonia do bloco dirigente também são elementos que justificam e explicam essa adesão.
Mas a indagação de Valério de que “não seria urgente considerar que estamos diante de uma onda de movimentos de extrema direita que obedece a um projeto estratégico que é incompatível com os regimes democráticos, porque está disposto a uma corrida armamentista contra a China?” parece completamente deslocada da realidade. Até o momento a principal disputa dos EUA com a China se desenvolve na esfera econômica, e não militar. Nada impede que haja uma escalada para um confronto militar, mas ainda não há indícios disso nessa quadratura. Outra coisa que pode parecer preciosismo, mas que assume papel importante no contexto da polêmica, é a afirmação de que esses movimentos de extrema direita são incompatíveis com os “regimes democráticos”. Fosse outro tema, essa expressão “regimes democráticos” não soaria estranha, mas numa polêmica com o neofascismo é sempre bom lembrar que esses “regimes democráticos” são burgueses. Não há “democracia em si”, mas democracia inserida num contexto de luta de classes. Lênin, pra seguir na linha do articulista, foi exaustivo ao desmascarar o discurso pequeno-burguês de que a democracia teria um valor universal. Em O Estado e a Revolução ou Como iludir o Povo Lênin disseca a falácia de que a democracia burguesa seja um regime que atende tanto aos interesses da burguesia quanto da classe trabalhadora.
Essa polêmica pode parecer sem sentido, mas não é bem assim, porque tem consequências práticas. Aliás, ainda homenageando o aniversariante, a prática segue sendo “o critério da verdade”. Voltemos então à pergunta inicial: qual a nossa postura diante de um governo do PT (Lula ou Dilma) quando este é confrontado pela extrema direita? A resposta já foi dada na realidade. Desde o primeiro momento, quando ainda em 2016, o governo Dilma foi ameaçado e depois deposto por um golpe de direita, nós, os revolucionários de esquerda, estivemos na luta contra o golpe, denunciando desde o início. Em 2018, estivemos na linha de frente do segundo turno da campanha de Haddad contra Bolsonaro. Em 2022 não foi diferente, fizemos campanha para Lula contra Bolsonaro. Mas daí a apoiar ou integrar o governo há uma diferença, já apontada por Lênin. Aliás, em outra obra fundamental, Que Fazer, Lênin afirma:
“Se a união é verdadeiramente necessária, escrevia Marx aos dirigentes do partido, façam acordos para realizar os objetivos práticos do movimento, mas não cheguem ao ponto de fazer comércio dos princípios, nem façam ‘concessões’ teóricas.” (grifo meu)
Não enfrentaremos a extrema direita se escondermos nosso programa. Para ganharmos a maioria do povo precisamos propagandear e agitar nossas consignas, não as do reformismo. O governo Lula sabe muito bem o que está fazendo. Ao defender a exploração de petróleo na foz do Amazonas não está enfrentando a extrema direita (que também é a favor desse crime), está aplicando, conscientemente, uma política energética neoliberal. Acreditar e difundir a ideia de que este governo está em disputa é não apenas um erro, do ponto de vista político, mas uma ilusão perigosa, posto que propõe destinar energias populares para “ganhar” o governo para uma posição mais à esquerda. Lula tem tempo de vida e militância suficiente para saber o que está fazendo. O jogo de concessões crescentes que está jogando, segundo ele para garantir uma suposta governabilidade diante de um Congresso Nacional espúrio, não terá outro resultado senão o fortalecimento do “Centrão” fisiológico e da própria extrema direita. Com fascista não se negocia. Isso a história já nos ensinou exaustivamente. Quando Lênin e os bolcheviques faziam “exigências” ao governo provisório, tinham plena ciência que estas exigências não seriam atendidas. A tática era justamente para desgastar o governo. Quando Valério faz “exigências” ao governo Lula, ele espera sinceramente que sejam atendidas? Será que se pedirmos com veemência Lula abre mão de explorar petróleo na margem equatorial? Pouco provável.
Silenciar o programa revolucionário não ajuda a revolução. Hoje, mais do que nunca, é preciso ganhar a consciência da classe para o socialismo, para o ecossocialismo. Deixar o mundo nas mãos da extrema direita ou da burguesia neoliberal coloca em risco toda a vida sobre o planeta. Saber construir a ponte entre as demandas e reivindicações imediatas e a estratégia socialista é o nosso desafio maior. Enfrentar a extrema direita sem ser cooptado para a defesa dos limites impostos pelo regime democrático burguês é imperioso. Repelir o sectarismo sem cair no oportunismo é atual e urgente.
A extrema direita, que sempre esteve presente no cenário político, está explicitamente exposta. E disposta. Deixou o subterrâneo dos esgotos onde se escondia, e está, à luz do dia, disputando a hegemonia burguesa. Precisamos encarar essa realidade. Ela veio pra ficar, não é um fenômeno passageiro nem localizado. Temos que avançar nas análises desse fenômeno e aprender a enfrentá-lo e derrotá-lo — nisso Valério também tem razão. Mas não há atalhos nessa jornada. Precisaremos dos clássicos e de uma nova produção política, mas será determinante o grau de confiança que temos na força revolucionária da nossa classe. Sem ela não há vitória possível.
É um exercício irrealizável saber onde Lênin estaria hoje se estivesse no Brasil de 2025, mas é muitíssimo improvável que estivesse no governo Lula ou na sua base de sustentação. Estaria enfrentando a extrema direita, mas sem depositar a sua esperança ou a esperança da classe trabalhadora num governo de conciliação de classes.
A maior homenagem que podemos fazer a Lênin no seu aniversário de nascimento é manter a integridade de seu pensamento livre das amarras e das pressões do revisionismo, seja ele sectário ou oportunista. Atualizar sim, deturpar não.
Fernando Carneiro é historiador e mestrando em Ciência Política.