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Magda Furtado é professora, militante da APS/PSOL e dirigente sindical; compõe o GT de Relações Internacionais da APS/PSOL e é convidada da CNAPS; é Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ.

A última derrota da esquerda no Chile, que se depara neste maio/23 com a elaboração de uma nova constituição controlada pela direita e extrema-direita, deve servir como aprendizagem, não só para a esquerda chilena como também para a América Latina. A História da luta de classes frequentemente proporciona lições tanto aos reformistas quanto aos revolucionários. Porém, aprender com as derrotas envolve um grau de humildade nem sempre bem distribuído entre as direções políticas reconhecidas como tal. As ilusões constitucionais¹, os amplos acordos parlamentares e a conciliação de classes como panaceia seguem tocando o transformismo nas esquerdas de todos os matizes.
É fato que estava prevista a vitória da direita nessas últimas eleições para o Conselho Constitucional do Chile. Ficou evidente o desinteresse da população e mesmo das esquerdas frente a um processo constitucional bastante restrito, controlado pelo congresso majoritariamente conservador e por 24 “especialistas” escolhidos por esse mesmo congresso. Mas não era esperada essa derrota estrondosa – que não é apenas do governo de Gabriel Boric, mas também daqueles que em 2019 tomaram as ruas exigindo direitos sociais negados pelas políticas neoliberais que dominam o Chile desde a ditadura de Pinochet.
Desta vez a direita e a extrema-direita, somadas, obtiveram 33 cadeiras em 51 (50 representantes de partidos políticos e uma cadeira reservada para um indígena), mais do que os 3/5 necessários para aprovar qualquer proposição. A chamada esquerda (a coalizão Unidade para o Chile, que apoia o governo e soma os partidos da frente Aprovo Dignidade, pela qual Boric foi eleito, e o Partido Socialista) obteve apenas 17 constituintes, número inferior aos 2/5 necessários para conseguir vetar alguma proposta. O grande vencedor foi o Partido Republicano, de José Antônio Kast (candidato derrotado por Boric nas eleições presidenciais), de extrema-direita, que sozinho elegeu 22 constituintes. A Democracia Cristã, que também está compondo o governo, mas lançou lista em separado por divergir das pautas sociais como a legalização do aborto, não elegeu ninguém. Essa configuração da Convenção Constituinte, que escancara a possibilidade de unificação entre direita e extrema-direita, prenuncia que o documento a ser elaborado, que apenas vai emendar um arcabouço previamente preparado pelos especialistas, poderá ser ainda mais dura e neoliberal que a carta em vigor, que já tinha recebido emendas em 1989, uma pequena reforma em 2005, no governo de Ricardo Lagos, e outras emendas no governo de Michele Bachelet.
Neste último processo constitucional, o movimento nas ruas às vésperas da votação em nada lembrava o Chile surgido com o “estallido social” de 2019, que derrotou a extrema-direita e foi uma inspiração para as lutas não só na América Latina como em diversas partes do mundo. O tema da segurança pública e o da imigração foram as principais bandeiras da maioria dos eleitos no atual processo. O Chile nesta última campanha eleitoral não parecia mais ter sido a arena de lutas protagonizadas pela juventude, mulheres, trabalhadores e indígenas que, em ruidosas e multitudinárias manifestações e greves, estiveram muito perto de derrubar o governo de direita de Piñera. O clamor das ruas era por uma nova história de direitos, esgarçando os limites do sistema e pondo um fim ao laboratório do neoliberalismo em que o Chile tinha se tornado. Defendemos que naquele momento tinha se instado um processo de crise de hegemonia.
Entretanto, no início de 2020 emergiu a pandemia de covid-19, que se tornou um pretexto para o acordo que instauraria um processo constitucional, cuja contrapartida foi o encerramento das manifestações e greves que paralisavam o país. Algumas das principais lideranças dos atos (entre elas Boric) referendaram esse acordo, mas nem todas as organizações o assinaram. O que se seguiu já é História, mas ainda não foi suficientemente debatido e absorvido como aprendizagem² : um conselho constitucional amplo e diverso, com 255 constituintes, entre eles representantes das nações indígenas, autonomistas e independentes, sendo 2/3 dos eleitos identificados com as posições de esquerda, produziu a constituição mais avançada de direitos de que se tem notícia – mas que foi rejeitada em referendo por 62% dos chilenos.
Se não se reconheceu na constituição elaborada na linha das posições de esquerda, a maioria do Chile certamente também pode não se espelhar em um projeto neoliberal puro e duro que reflita ideologicamente essa eventual vitória obtida pela extrema-direita. Apenas o Partido Republicando, que era contrário ao novo projeto constitucional, conseguiu sozinho os 2/5 para vetar qualquer proposta que desagrade os saudosos da ditadura. O grande número das abstenções (15,1%), apesar da participação obrigatória, diante de um processo constitucional que já nasceu pré-formatado pela configuração do congresso atual (que escolheu o comitê dos 24 especialistas que elaboraram o anteprojeto), assim como alto índice de votos nulos e brancos (21,5%) e a pouca participação popular nos debates evidenciam o risco de novo descolamento dos anseios médios da população. Dependendo do documento que sair dessa configuração de constituinte, o rechaço no “plebiscito de saída”, previamente marcado para 17 de dezembro, pode ser um mal menor.
Logo depois do resultado, o presidente Boric reconheceu a derrota e apelou aos vencedores que não cometessem “o mesmo erro que cometemos” no primeiro processo, ou seja, que não escrevam uma constituição à sua imagem e semelhança, mas distante das posições médias no Chile hoje. Um apelo para que a direita e a extrema-direita não aprovem as posições extremistas que defendem sobre Direitos Humanos, ou para que concedam em direitos sociais que deveriam ser providos pelo Estado, parece patético diante da polarização que também toma conta do ambiente político chileno. Pode parecer uma tática à deriva dar conselho para que a extrema-direita aja com moderação, mirando-se no exemplo dos constituintes majoritários do projeto anterior fracassado (esquerda, indígenas e independentes identificados com as posições da esquerda). Mas soou sensato para a imprensa e analistas, que já anteveem a possibilidade de esse processo terminar em um coro de tragédia, com novo rechaço da constituição no referendo marcado para dezembro/23, resultando em um governo já paralisado em menos da metade do mandato cumprido. Nesse caso, a constituição em vigor, elaborada na ditadura de Pinochet, ainda que “suavizada” por reformas, seguiria assombrando o país.
A lição básica de que não se defende a instauração de processo constituinte em período de descenso dos movimentos de luta parece banal demais, mas ainda permanece válida. Essa ainda tem sido uma das principais reivindicações dos movimentos de luta em países com constituição conservadora e elitista, como aconteceu recentemente nas manifestações contra o governo de Dina Boluarte no Peru, após o processo golpista que resultou na destituição do presidente Pedro Castillo – entre outros exemplos. Mesmo no Brasil de vez em quando alguns grupos de esquerda agitam a defesa de novo processo constituinte, ainda que em períodos de descenso das lutas e com risco de revogação de todos os direitos trabalhistas ainda remanescentes das emendas e reformas neoliberais impostas nos últimos anos.
Entretanto, mesmo em períodos de ascensão das lutas as ilusões constitucionais podem desarticular e apassivar os movimentos e suas principais lideranças, levando-os a crer que podem conquistar reformas profundas pela via institucional que substituam a crise e quebra da hegemonia burguesa pela via de lutas contra-hegemônicas e revolucionárias. A referência pode ser o Chile de 2019, caso não se apassivasse via acordo constitucional, mas também o exemplo histórico dos bolcheviques na Rússia de julho de 1917. Foi quando Lênin tocou o alerta, em “Sobre as ilusões constitucionais³: contra o poder imobilizador do atalho de uma Assembleia Constitucional proposto e sempre postergado pelo governo provisório de Kerensky. Podemos imaginar o destino da Revolução de Outubro se o processo revolucionário tivesse sido substituído por uma assembleia constituinte, baseada em acordo sobre a suposta correlação de forças a partir da Revolução de Fevereiro. Cabe retomar como aprendizado a advertência de Lênin aos companheiros da necessária prevalência da luta de classes lá em julho de 1917:


O Governo Provisório da segunda composição marcou a data da convocação da Assembleia Constituinte para 30 de Setembro. O Governo Provisório da 3ª composição, depois de 4 de Julho, confirmou solenemente esta data. E, entretanto, há 99 probabilidades em 100 de que a Assembleia Constituinte não seja convocada nessa data. Se ela for convocada nessa data, há novamente 99 probabilidades em 100 de que ela seja tão impotente e inútil como a primeira Duma, enquanto uma segunda revolução não triunfar na Rússia. Para nos convencermos disso basta abstrairmo-nos por um momento do alvoroço das frases, promessas e ninharias do dia, que entope o cérebro, e olhar para aquilo que é fundamental, que determina tudo na vida social: a luta de classes4 . (grifos nossos)


Após a Revolução de Outubro, Lênin mesmo preparou uma constituição aprovada na URSS em 2024. Com o fim da ditadura no Brasil, foi possível ter uma constituição progressiva em 1988 (em comparação com o documento outorgado na ditadura), momento de ascensão dos movimentos sociais e partidos de esquerda – a chamada “constituição cidadã, que agora vem sendo desfigurada a golpes de PECs. A Bolívia elaborou e referendou uma constituição bastante avançada em 2009, que celebra sua refundação como um Estado Plurinacional, garantindo a autonomia dos territórios indígenas e sua participação no conselho de governo, também compartilhado com organizações dos movimentos camponeses. Em todos esses casos, a correlação de forças no momento garantiu constituições que ampliaram direitos para a classe trabalhadora e foram amplamente aprovadas, mesmo enfrentando resistências.
Outra lição óbvia para as esquerdas de todos os matizes é a armadilha dos amplos acordos de governabilidade quando temos a eleição de um presidente identificado com a esquerda e um congresso de maioria centro-direitista. Mesmo assim as esquerdas eleitoralistas vendem a ilusão de que estaria aberto um tempo de grandes transformações sociais. Evidentemente o presidente eleito fica fortemente pressionado a caminhar para a centro-direita, para construir os tais acordos de governabilidade, ou sofrerá um processo de impeachment.
Contudo, tanto no Chile quanto no Brasil e alhures uma grande fatia da esquerda de variados matizes segue acreditando nos superpoderes da fórmula da conciliação de classes. Ela seria aplicável até em condições claramente desfavoráveis de correlação de forças, desde que haja “vontade política”, “disposição para o diálogo” e talvez uma confiança excessiva na capacidade de liderança do eleito, desde que o termo “socialismo” não venha mais a ser pronunciado. Pois bem, o eleito identificado com a esquerda, mas em confronto com parlamento de maioria de direita, pode renegar ou postergar ao infinito as principais bandeiras da esquerda, mas a maioria congressual de direita segue pressionando o presidente, exigindo-lhe até a alma, ou nada anda em seu governo. Os movimentos sociais e partidos que o apoiaram são chantageados a não lhe cobrarem os compromissos, a não mobilizarem suas bases para que “não engrossem o discurso da direita” contra o governo supostamente de esquerda, mas atendendo aos interesses da burguesia. O mercado financeiro não deixa de cobrar seu preço e conta com o congresso para fazer valer seus interesses. É assim que um presidente que se identifica e é identificado como de esquerda pode virar a triste figura de um “pato-manco”, e a saída eleitoral sem construção prévia, avanço e conquista de hegemonia escancara seu abismo. Dessa forma, o fetiche do eleitoralismo segue desarmando as lutas – e essa é a mais dura das lições ainda não aprendidas.
Não precisamos perguntar onde estão os que em 2019 tomavam as ruas do Chile bradando por direitos sociais. Aqueles que no Chile lutaram em 2019 e anteriormente, os jovens em ocupações precarizadas ou desempregados, os idosos sem aposentadoria digna e os que não conseguem pagar por seus estudos ou pela assistência médica continuam com as mesmas carências de direitos que as políticas neoliberais seguem naturalizando. O fracasso do primeiro processo constitucional teve como consequência o atraso das lutas no Chile – aquele recuo quase paralisante que costuma acontecer após uma grave derrota. A esquerda e os movimentos sociais que participaram do primeiro processo constitucional ainda parecem estar imersas em desalento.
O preço das ilusões constitucionais no Chile está sendo pago, e mais uma vez ficou constatado o quanto a conciliação de classes atrasa as lutas. Também aqui no Brasil e em outras partes da América Latina temos esse atraso e esse aprendizado. O tempo foi concedido, mas a burguesia não abre mais espaço sequer para a colaboração, pois busca recuperar sua taxa de lucro atingida pela crise. O governo foi eleito sob muitas promessas, mas os projetos emperraram no Congresso e a crise social e política prossegue. A fagulha pode reacender a qualquer momento e então a resistência volta à arena de luta.

1 – LÊNIN, Vladimir. Sobre as ilusões constitucionais. In: —-Obras Escolhidas em seis tomos. Lisboa: Edições “Avante!”, 1984, t3, pp 298-311. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/08.htm#r10, acessado em 18/05/2023.

2 – Analisamos esse processo em constitucional no Chile e sua rejeição no plebiscito de saída em: ALMEIDA, Jorge e FURTADO, Magda. Chile: lutas sociais, hegemonia e dependência da Unidade Popular ao governo Boric. In: MELLO, L.E. Constitucionalismo intermitente e lutas sociais no Brasil e no Chile. Vol.2, pp. 71-108. Marília: Lutas Anticapital, 2023.

3 – LÊNIN, Vladimir. Sobre as ilusões constitucionais. In: —-Obras Escolhidas em seis tomos. Lisboa: Edições “Avante!”, 1984, t3, pp 298-311. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/08.htm#r10, acessado em 18/05/2023.

4 – Idem, ibidem.

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