Search
Close this search box.

Coordenação Nacional da APS/PSOL – 28 de abril de 2023

100 dias em tempos de crise internacional

Analisar esses pouco mais de 100 dias do terceiro Governo Lula não é uma tarefa fácil. Sua eleição e posse nos coloca diante de uma realidade muito distinta de 2003, quando Lula iniciou seu primeiro governo.

O governo se depara com um cenário internacional e nacional marcados pelo crescimento da extrema-direita, fruto de uma profunda crise dos regimes políticos liberais. Crise política que é alimentada pelo avanço do grande capital nos direitos da classe trabalhadora – precarizando suas condições de vida -; de uma contraofensiva em relação aos direitos civis conquistados pelas mulheres, pelos LGBBTAQIAP+ e nas lutas antirracistas; de uma escalada militar entre as potências imperialistas, cuja manifestação mais visível é a Guerra da Ucrânia; de uma crise ambiental cada vez mais explícita e próxima do cotidiano das pessoas, que se veem sem alternativas diante de fenômenos climáticos extremos, dentre outros aspectos. 

Na ausência de alternativas programáticas com base social ampla à esquerda e na insuficiência de alternativas da direita convencional, observa-se o crescimento da extrema-direita e o enfraquecimento de várias forças políticas tradicionais de centro, à esquerda ou à direita, a depender do contexto. A extrema-direita navega na crise capturando a frustração, indignação e medo das incertezas que atingem amplos setores sociais. Suas falsas alternativas passam pela xenofobia, instalação de regimes autoritários e pela perspectiva de reestabelecer o controle sobre corpos e sexualidades. Ao mesmo tempo, dissimulando seus objetivos e os articulando em torno de pautas conservadoras diversas, a extrema-direita atua para preservar os interesses fundamentais do grande capital em sua fase financeirizada. 

O cenário internacional também está marcado por mais um capítulo da crise estrutural do capital, impulsionada conjunturalmente pela combinação de mudanças no padrão das taxas de juros, que aumentaram substancialmente no último período, com falências ou medidas emergenciais de salvação de médias e grandes instituições bancárias nos EUA e na Europa. Compõem o quadro da crise a persistente inflação de alimentos e energia e a desorganização, remanescente da pandemia e impactada pela Guerra da Ucrânia, de algumas cadeias de suprimentos globais, agravada pela disputa entre EUA e China em torno dos microprocessadores e outras questões geopolíticas, tais como a disputa por recursos naturais importantes para as mudanças tecnológicas que atendam à necessidade de descarbonização da economia. 

A previsão do Banco Mundial é de crescimento global na faixa de 2% com possibilidade de que esse baixo crescimento se torne recessão se os juros continuarem aumentando e as tensões geopolíticas impactarem ainda mais no mercado de alimentos e energia. 

100 dias em tempos de destruição

Os aspectos pontuados acima mostram o tempo de incertezas que vivemos, no qual o Governo Lula não é uma ilha isolada dessas questões. Assim, a dificuldade de análise reflete a articulação dos elementos internacionais e de questões nacionais mais específicas, como o perfil do próprio governo, a disputa entre classes e frações de classe em vigor no país, que se dá por dentro e por fora do governo. O Governo Lula é fruto de uma frente bastante ampla e diversificada ampliada ainda mais no período entre a transição e a posse, passando pela fracassada tentativa de golpe de 08 de janeiro.

Para realizarmos um balanço preliminar no governo é preciso evitar a tentação de avaliá-lo por fragmentos, pegando questões unilaterais positivas e negativas sem compreendê-las em sua totalidade. Também se deve evitar análises conclusivas em questões que ainda não estão delineadas. É preciso reconhecer que algumas tendências gerais estão em desenvolvimento e que esse processo ainda não está nítido.

Sendo assim, e para darmos coerência à análise, nosso balanço de 100 dias considerará os seguintes parâmetros básicos:

  1. Estamos em um cenário de crise internacional que combina múltiplos fatores econômicos, sociais, políticos, ambientais, tecnológicos e militares. Esse cenário pode impactar no fluxo de investimentos para países emergentes (caso do Brasil), além de impactar em variados custos em uma economia dependente e vulnerável como a brasileira. Por outro lado, abrem-se possibilidades de uma política chamada de “ativa e altiva”, que pode permitir ao país ocupar um espaço político-diplomático, mercados comerciais e fluxos de investimentos estrangeiros em áreas específicas, mas que não rompe com a dependência e a subsoberania do Brasil.
  2. No Brasil, é preciso compreender as forças sociais em movimento, isto é, como as principais classes e frações de classe estão se movimentando.
  3. As forças políticas em movimento, isto é, como a elite política e a jurídica se movimentam e como isso está relacionado com as forças sociais do item anterior.
  4. A situação geral da classe trabalhadora e dos oprimidos, seus limites e possibilidades de se colocarem em luta.
  5. Por fim, as tarefas da esquerda nesta conjuntura.

Como já afirmamos em resoluções anteriores, a vitória de Lula em 2022 foi um triunfo da mobilização popular, combinada com divisão no seio da burguesia, que não conseguiu emplacar uma “terceira via” entre Bolsonaro e Lula. Sendo assim, Lula tornou-se a única alternativa eleitoralmente viável para derrotar Bolsonaro e dar estabilidade ao regime político liberal no Brasil. A vitória foi apertada, o que demonstra o quanto a extrema-direita no Brasil adquiriu base de massas e tende a ser uma força social, política e eleitoral relevante por um bom período.

A derrota de Bolsonaro levou a extrema-direita a dois momentos. No primeiro, manteve-se mobilizada para questionar os resultados das urnas e, com apoio de uma parte das Forças Armadas, permaneceu atuante. Realizou um primeiro ensaio geral durante a diplomação de Lula no TSE, efetuando ações radicalizadas com pouca adesão. Em um segundo momento, após a bela simbologia popular da cerimônia de posse de Lula, arriscou a frustrada tentativa de golpe.

A tentativa de golpe de 08 de janeiro levou a extrema-direita a uma derrota momentânea. O voluntarismo dos setores radicalizados mostrou-se insuficiente para um golpe. Daí em diante, ocorreu um processo de desarticulação, com a prisão de golpistas, o estrangulamento econômico de parte dos seus financiadores e o recuo de sua principal liderança, naquele momento refugiado nos EUA temendo a responsabilização por seus atos durante o governo. Depois vieram os escândalos das joias, o que contribuiu para o desgaste da sua imagem entre os eleitores não fanatizados. 

A extrema-direita passou por um momento de desorganização política, o que não significou total paralisia, mas sim carência de direção política e relativo isolamento. Abriu-se, assim, uma brecha política importante, ocupada apenas parcialmente pelo governo.

Essa situação de desorganização temporária da extrema-direita vem se modificando. Primeiro, porque os fatores sociais, econômicos, políticos e culturais que a alimentam ainda têm forte presença na realidade nacional e internacional. Na segunda quinzena de abril, a extrema-direita retomou certa capacidade de iniciativa com impactos relevantes, vide a crise no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o pânico gerado pelas ameaças de ataques nas escolas (em parte incitado pelo “Gabinete do Ódio”) e a própria Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar a tentativa de golpe do 08 de janeiro. O governo vinha se colocando contra – e com razão, para não dar palanque para a extrema-direita -, mas decidiu fazer do “limão, uma limonada”, mantendo relativo controle por ter a Presidência e Relatoria, depois dos vídeos manipulados e vazados envolvendo o GSI.

Muitas possibilidades estão abertas. Desde um “bolsonarismo” sem Bolsonaro como principal líder até uma movimentação de desestabilização permanente, com Bolsonaro na espreita para colocar-se como “salvador da pátria”. Esses fatores e possibilidades nos colocam a difícil e necessária tarefa de lutar para derrotar a extrema-direita, combatendo suas lideranças, claro, mas fundamentalmente deslocando parte de suas bases sociais para outra perspectiva que não seja a “guerra permanente” contra inimigos imaginários, que dissimula os reais problemas do país: a brutal concentração de renda e riqueza nas mãos de poucos privilegiados. São necessárias, do ponto de vista mais imediato, algumas medidas que tenham impactos rápidos para dar mais base popular e, por tabela, maior capital político para o governo.

O Governo Lula passou parte desses 100 dias se consolidando, especialmente depois da tentativa de golpe de 08 de janeiro. No fundamental, tomou medidas cabíveis no momento para enfrentar essa situação, nos marcos de um governo que não é de esquerda, angariando o apoio da cúpula do Poder Judiciário, do Congresso Nacional e dos Governadores de Estado. 

Os pontos baixos desse processo foram a manutenção de Múcio no Ministério da Defesa para não tensionar a relação com as Forças Armadas, sem, contudo, tomar nenhuma iniciativa importante para superar a tutela militar sobre o Estado brasileiro. Perde-se uma oportunidade histórica mais uma vez. A posição “democrática” das Forças Armadas, não nos enganemos, foi muito mais uma conveniência por compreender que não havia condições sociais e políticas para uma empreitada golpista (sem suporte das principais frações do capital nacional e internacional, sem apoio da elite política e judiciária e sem apoio dos EUA). Outro foi a manutenção de algumas escolhas bolsonaristas e de setores empresariais no MEC, com pouco diálogo com os movimentos sociais que acompanharam a transição e defendem um modelo de educação pública democrático e popular.

100 dias entre a esperança e as limitações do PT e da Frente Ampla

A composição do governo expressou a amplitude da frente que o elegeu, mas não só isso; também a reedição, em um novo contexto, dos governos de frente ampla de 2003 a 2016. 

Em seu conjunto, retomou os patamares mínimos de representatividade democrática com setores populares e intelectuais progressistas renomados em algumas posições importantes nos Ministérios. Iniciou as medidas necessárias para retomar políticas públicas compensatórias e no menor campo de resistência do grande capital, que foram marcas de seu governo anterior. Atuou para reorganizar órgãos públicos sucateados e sabotados pelo Governo Bolsonaro para viabilizar sua agenda contra os trabalhadores e trabalhadoras, mulheres, negros e negras, os LGBTTQIA+, campesinos, povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais e a ampliação brutal do desmatamento e da mineração.

De todas essas iniciativas, a mais importante, tanto material como simbolicamente, foi a atuação firme para sanar a grave crise humanitária que atingiu e ainda atinge os Yanomamis. Aqui cabe a importante organização do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), tendo à frente Sônia Guajajara. A unificação institucional em torno do MPI de parte dos órgãos vinculados às políticas públicas para os povos indígenas e a participação de seus representantes em outros espaços do governo, além do aporte orçamentário ocorrido, é um importante alento para um dos movimentos que mais sofreram com o Governo Bolsonaro e que mais o combateram. Há muito o que avançar e isso dependerá de muita mobilização social do movimento indígena e de todos os setores democráticos e populares que o apoiam. Muitas batalhas virão.

Uma análise sobre as políticas para as mulheres nos 100 primeiros dias do governo Lula nos permite uma compreensão parcial sobre o cenário que se desenha no país nos próximos anos frente ao avanço do conservadorismo, do bolsonarismo e da extrema direita. É necessário destacar políticas que foram retomadas, revogadas e propostas pelo governo frente à terra arrasada deixada pelos governos Temer e Bolsonaro, quando o Brasil encabeçou uma aliança internacional antiaborto, atacando e retrocedendo em diversos direitos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, a partir de uma pauta negacionista e anticiência, indo na contramão de recomendações da OMS e do SUS.

Destacamos aqui a reestruturação do Ministério da Mulher e reconhecemos como positivo o fato de o governo ser composto por 11 ministras, com intelectuais renomadas em suas áreas de atuação, como Cida Gonçalves, feminista com acúmulo no debate de enfrentamento à violência contra mulher, e a nomeação de uma cientista bem conceituada, Nísia Trindade, para o Ministério da Saúde (MS). A opção de uma estruturação em ambos, retirando os temas da agenda conservadora e negacionista, é um passo importante para recompor o básico de antes do golpe e criar condições para avanços no cenário futuro.

Nesse caminho, o rompimento com a Declaração do Consenso de Genebra (que afirmava a não existência ao direito internacional ao aborto legal e tratava a concepção de família numa perpectiva cisheteronormativa), que foi assinado em 2020 pelo governo anterior, é um movimento na política internacional para retomar acordos e compromissos internacionais na garantia da vida e dos direitos das mulheres, como o Compromisso de Santiago e a Declaração do Panamá, no qual se firma o compromisso pela igualdade de gênero na América Latina.

Somam-se aos itens anteriores as seis portarias revogadas via MS: 1) a obrigatoriedade de que a equipe médica comunique às autoridades policiais e competentes para requisitar o acesso ao direito ao aborto legal em decorrência de estupro; 2) o retorno da Rede Cegonha, que havia sido substituída pela Rede de Atenção Materna e Infantil (RAMI), que é objeto de várias críticas, entres elas a falta dos Centros de Parto Normal, e a ausência da previsão de presença da enfermagem obstétrica e obstetrizes na atuação da rede. Houve também a suspensão da caderneta da gestante, que promovia práticas e orientações sem comprovação científica e reforçava a violência obstétrica; recentemente, a nova cartilha foi apresentada e aprovada e em breve deve ser distribuída; 3) enfrentamento à pobreza a menstrual, a partir da assinatura do decreto que cria o Programa de Proteção e Promoção da Dignidade Menstrual, que garante através do SUS a oferta de absorventes à população em situação de vulnerabilidade social; 4) políticas públicas específicas para população transexual, travesti e não-binária que estão sendo estudadas; algumas já estão acontecendo, como a expansão na oferta de prevenção combinada, para além da rede especializada em HIV, ampliação nos ambulatórios que atendem essa população, modelos diferenciados de serviços que atendem adolescentes e jovens TT’s; 5) no enfrentamento ao capacitismo, a promoção de capacitações gratuitas a profissionais na área a saúde da mulher para atendimento de mulheres com deficiência e mobilidade reduzida; 6) a retomada da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e do  Projeto Saúde em Territórios, Favelas e Periferia, conjuntamente com o Ministério da Igualdade Racial, com compromisso do enfrentamento ao racismo, compreendendo que ele é um determinante no acesso à saúde.

Mas nem tudo são flores, e sabemos que a composição da ampla frente que elegeu o governo Lula tende sempre a tombar mais à direita, sendo que alguns debates e iniciativas deixam a desejar, especialmente no que tange à garantia dos direitos sexuais e reprodutivas, em especial a ampliação do direito ao aborto legal, que tem relação direta com o combate à mortalidade materna. A ausência dessa discussão de forma propositiva e fundamentada no debate científico e numa teoria feminista faz com que a extrema direita insista na aprovação da PEC do Nascituro (PEC do Estuprador), como já vem ocorrendo em alguns estados a partir de deputados estaduais bolsonaristas, como no caso da Bahia.

Podemos pontuar também a falta de previsão orçamentária para a garantia da Lei 14.541/23 sancionada em abril, que determina o funcionamento das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), 24 horas por dia, sete dias por semana, incluindo feriados, o que na prática pode inviabilizar a concretude da lei. Nesse sentido, é necessário apontar e tensionar a constituição de espaços no governo para debater as pautas feministas. Contudo, isso ainda é insuficiente, por isso a mobilização dos movimentos feministas e mulheres será fundamental para garantir nossas vidas e nossos direitos.

A retomada de políticas de combate ao racismo também é parte dos méritos que o governo tem nesses primeiros 100 dias. A retomada do Ministério da Igualdade Racial, com Anielle Franco, a ocupação do Ministério da Cultura – Margareth Menezes – e da Fundação Palmares – João Jorge Rodrigues – por representantes da luta antirracista e o papel desempenhado por Silvio de Almeida à frente do Ministério dos Direitos Humanos são sinais importantes de mudanças. Mas há muito o que fazer no combate ao racismo estrutural no Brasil, através da combinação de políticas públicas universais com ações afirmativas voltadas para os negros e negras. São necessárias mudanças substanciais que passam pela ampliação dos recursos orçamentários para as políticas de combate ao racismo até transformações na política de segurança pública, educação, saúde e geração de emprego e renda, sem as quais o combate ao racismo não avançará de forma significativa.

No Congresso Nacional, as condições de governabilidade de Lula estão mais complexas do que no período anterior. Sem base parlamentar suficiente e sem apostar na mobilização popular, fez um acordo com o Centrão para viabilizar, via PEC da Transição, o primeiro ano do governo, com retomada do Bolsa Família, do Minha Casa, Minha Vida, pequeno aumento real do salário-mínimo, aumento emergencial para os servidores públicos (ainda bem aquém das perdas desde 2015) e parcial recomposição do orçamento das universidades e institutos federais. O Governo Lula, ao fazer isso, atende parte das demandas populares e consegue razoável base de apoio, ainda na faixa dos 40%, mas não deixou de fortalecer o Centrão nesse processo.

A esperança despertada com a eleição, a transição e as medidas iniciais convivem com a tática moderada e conciliatória do governo e as limitações impostas pelo grande capital e pelo Congresso Nacional, majoritariamente conservador. A PEC da Transição também funcionou, em que pese certas garantias para o início do governo, como uma “faca no pescoço”. Ela é também um mecanismo de pressão do grande capital para conter qualquer perspectiva mais arrojada, mesmo nos limitados marcos do “desenvolvimentismo”. Por isso, a mesma PEC que permite ao governo caminhar em seu início é a mesma que impõe uma resposta à questão fiscal ainda este ano. 

As mudanças legais e infralegais realizadas a partir do golpe de 2016, algumas até um pouco antes, reduziram substancialmente a margem de manobra de qualquer governo com mínima perspectiva popular. Esse é o sentido geral da lei das estatais (coibindo maior controle do governo sobre as empresas estatais) e da própria autonomia do Banco Central, no qual o mandato do presidente não coincide com o período de 04 anos do mandato do presidente da República. Ainda ocorreu a absurda e criminosa privatização da Eletrobrás, de refinarias e da rede de distribuição da Petrobrás. Outras privatizações em curso foram, felizmente e temporariamente, brecadas pelo governo. 

Em termos práticos, aumentaram as trincheiras dos interesses do grande capital no Estado. A principal expressão desse processo é o embate contra a absurda taxa de juros imposta pelo Banco Central, presidido por Roberto Campos (apoiador explicíto de Bolsonaro). 

O enfrentamento feito por Lula contra a alta taxas de juros buscou colocar o setor produtivo e comercial em movimento contra a política monetária em curso, jogando a “batata quente” dos juros altos no colo de Roberto Campos. Os representantes de importantes frações do capital no Brasil pegaram a “batata quente” e a dividiram ao meio: criticaram a taxa de juros, mas cobraram do governo compromissos efetivos com a “responsabilidade fiscal”, colocando esse tema como pré-condição para forjar um “ambiente propício” à redução da taxa de juros. Na prática, corroboraram o argumento de Roberto Campos com tom mais ponderado. Lula ganhou pontos na opinião pública, com 80% favoráveis à sua posição, mas efetivamente não resolveu a bola dividida. Mesmo porque, enquanto Lula criticava publicamente os juros altos, Haddad tratava de fazer os acordos atendendo aos interesses do capital financeiro. O Brasil continua com a maior taxa real de juros do mundo e dificilmente essa questão se resolverá neste ano.

No Congresso Nacional, predomina a fragmentação e isso tem agravado o fisiologismo político. A gestão do orçamento, mesmo considerando que o Executivo ainda tem enorme peso nesse processo, tornou-se mais difícil, pois nos últimos anos assistimos a um empoderamento do parlamento na destinação dos recursos do orçamento. Guardada as devidas proporções, é como se tivéssemos mais de 400 microempreendedores individuais. Lira (PP) tem conseguido manter-se com poderosa base no Congresso gerindo esses interesses. Tentativas de enfraquecer seu peso têm ocorrido, mas nada que, neste momento, consiga reverter a condição atual. 

A opção de Lula, como esperado, é por uma governabilidade baseada na combinação de retomada de ministérios que atendem questões importantes na luta por redução das desigualdades no Brasil (combate ao racismo, mulheres, direitos humanos, povos indígenas, desenvolvimento agrário, desenvolvimento social etc.), atendendo a base social democrática e popular que lhe sustenta mais organicamente (porém, sem poder real de cumprir sua missão institucional), com distribuição de postos mais estruturantes no Estado para setores da direita, alguns deles que estavam com Bolsonaro no verão passado ou que são alinhados com o grande capital. Aí entram ministérios robustos e politicamente importantes, como o das Comunicações, e posições no segundo escalão com boas fatias do orçamento público. A reedição dessa fórmula convencional ainda não garantiu a Lula maioria congressual para desenvolver sua agenda mais ampla de governo, exigindo negociações pontuais, tema a tema, o que aumenta o poder de barganha do Centrão.

No geral, a visão corrente é que a correlação de forças sociais (entre as classes) e política (no congresso, nos governos estaduais e no judiciário) é desfavorável, criando obstáculos para movimentos fora dessa fórmula de governabilidade. Em parte, essa afirmação procede, mas o problema é o que se faz diante dela. A rigor, se as forças democráticas, populares e socialistas – especialmente os partidos de esquerda, centro-esquerda e as demais organizações populares – ficarem paralisadas e submetidas a essa dinâmica conciliatória do governo, sem mobilização popular, a tendência é um governo bem aquém das necessidades que estão postas para o povo trabalhador. Ao colocar a correlação de forças como algo estático, o governo vai reduzindo sua própria capacidade de desenvolver políticas que atendam de forma mais abrangente as demandas populares. Ainda corre o sério risco de ficar na defensiva com denúncias de corrupção ou bloqueios de medidas de caráter popular. Mudanças estruturais são jogadas para um futuro qualquer, indeterminado.

O Governo Lula não apresentou ainda um plano mais acabado de atendimento das demandas populares represadas nos últimos anos. Em se tratando de uma situação atípica, com um enorme desmonte do setor público, os 100 dias passados são poucos para isso. Mas o tempo econômico e da gestão do Estado precisam estar sintonizados com o tempo das necessidades da população, com risco de a extrema-direita surfar em um eventual desgaste precoce do governo. O anúncio, sem maiores detalhes, da elaboração do Plano Plurianual (PPA) com participação popular não decisória é importante, mas insuficiente para dar respostas de curto e médio prazos.

Nesses 100 dias o Governo Lula tem concentrado esforços também em articulações sob a bandeira de proteção ao meio ambiente, especialmente considerando os potenciais investimentos oriundos do capital estrangeiro, como indicam a retomada do Fundo Amazônia e a defesa do Brasil como sede para a Conferência das Partes da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP 30. Apesar disso, o projeto de exploração de petróleo na Foz do Amazonas pela PETROBRAS e o apoio à construção da Ferrogrão, por exemplo, na prática contrariam esse discurso.

O desmembramento de órgãos antes concentrados na pasta do Ministério da Agricultura e Pecuária, agora redistribuídos nos reativados Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério de Pesca e Aquicultura (MPA), alimentaram os atritos com o setor do Agronegócio. A suspensão de financiamentos a propriedades rurais com desmatamentos irregulares pelo BNDES, resultado da parceria com o MAPBIOMAS, também aumentou a insatisfação do setor com o Governo Lula, assim como a transferência do Cadastro Rural (CAR) para o Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima sob comando de Marina Silva, reestruturado e fortalecido após o intenso desmonte promovido por Bolsonaro.

O Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), extinto no governo ecocida de Bolsonaro, foi recomposto, assim como o Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente, importantes instâncias da sociedade civil que sinalizam melhoras no contexto das políticas ambientais no Brasil. 

A despeito dos avanços promovidos pelo governo Lula em relação ao meio ambiente nesses 100 dias, a integração entre a prática e o discurso será posta à prova diante dos desafios da transição energética, adaptação às mudanças climáticas e a própria natureza dos governos de coalização, sujeitos a conflitos de interesse. Há no congresso tentativas de reverter as mudanças por partes de setores conservadores e defensores do Agronegócio, bem como de aprovação de propostas como as do chamado “pacote da destruição” (PLs de Regularização fundiária, Agrotóxicos e Licenciamento Ambiental). 

O Brasil ocupa um espaço importante nos debates e agendas globais que defendem um “desenvolvimento sustentável”, embora esse seja um objetivo inalcançável dentro do capitalismo. Nesse sentido, lidar com as pressões e interesses internos e externos do capital em relação aos recursos e serviços ambientais, e trabalhar pelo atendimento às necessidades do povo brasileiro, é um dos grandes desafios do Governo Lula.

Sintetizando, o terceiro Governo Lula, da posse, passando pela reação aos golpistas, e indo até os 100 dias, tem como marca a retomada de padrões mínimos de convivência democrática e a busca pela reestruturação de programas, órgãos e políticas públicas desmanteladas pelos governos anteriores de Temer e Bolsonaro. O que é positivo e necessário, dado o cenário anterior. Por outro lado, não tem se movimentado para a reversão de políticas fundamentais que limitam o próprio governo, a exemplo da Paridade de Preços Internacionais (PPI), do desmonte da Petrobrás, da privatização da RLAM e da própria composição herdada da direção da empresa; e da privatização da Eletrobrás. Soma-se a essas questões uma posição contrária a revogar o “Novo Ensino Médio” (NEM), principal pauta que mobilizou os movimentos sociais nesse início de governo, quando obtivemos uma vitória parcial com a suspensão temporária da sua implementação, bem como o silêncio acerca da revogação das escolas cívico-militares, recomendação apontada no Grupo de Trabalho da Transição.

O governo tende a não promover novas privatizações de empresas existentes e quebrar direitos. Mas também tende a não fazer o revogaço amplo das privatizações ocorridas e a não reverter, se não for pressionado, os aspectos centrais das regressivas reformas trabalhista e previdenciária. 

Os 100 dias, o Arcabouço Fiscal e os limites da esperança

Quando o governo estava alcançando os 100 dias, Haddad anunciou os eixos de uma política macroeconômica que condiciona não só os próximos anos do governo, mas pode se consolidar como uma política de Estado, favorável ao capital financeiro e para além do governo atual. É como se os 100 dias, a partir desse anúncio, fossem “congelados” à espera do projeto de lei que substituirá o teto de gastos, apresentado somente no último dia 18 de abril.

No embate em torno das taxas de juros, a cobrança de uma nova política fiscal foi ecoada pelos agentes de mercado e na ata do Comitê de Política Monetária do Banco Central (COPOM-BC). A resposta do governo foi uma genérica, imprecisa e problemática proposta de arcabouço fiscal. Na prática, um novo teto de gastos, mais flexível, é verdade, mas que impõe limites substanciais, impeditivos, para o desenvolvimento de um projeto efetivamente democrático e popular no país.

Logo depois da apresentação da proposta, o “mercado” teve duas reações: a primeira foi elogiosa com o compromisso do governo com a “responsabilidade fiscal”; a segunda é que, nos termos genéricos da proposta, ficou claro que sua viabilidade depende da melhoria da arrecadação, o que gerou reação contra possíveis aumentos da carga tributária. 

Em paralelo, Haddad tratou de tranquilizar o mercado, falando que não haveria novos impostos ou aumento das alíquotas já existentes e que nem sequer mexeria na desoneração da folha (o que traz prejuízos enormes para o Regime Geral da Previdência Social) e que a melhoria da arrecadação viria da correção de distorções existentes em benefícios fiscais e no combate aos mecanismos de sonegação fiscal do comércio virtual – iniciativa festejada pelo comércio varejista no Brasil -, mas o recuo nesse tema veio logo depois de erros de comunicação e enorme desgaste. Contradizendo essas informações, Haddad e Simone Tebet lembraram a importância da reforma tributária para que sejam obtidos melhores resultados com o arcabouço fiscal, uma vez que a complexidade dos impostos no país e as diversas distorções geram ineficiência na sua cobrança. Já existe um projeto de reforma tributária tramitando no Congresso, precisando de alguns ajustes que serão encaminhados após a aprovação do arcabouço fiscal. 

A expectativa ilusória de ambos é que, “tranquilizando os mercados”, os juros irão para patamares razoáveis e o Brasil passaria a ter crescimento econômico. O governo enfrentará enormes dificuldade para aprovar no congresso a reforma tributária pretendida, uma vez que há fortes lobbies para cada isenção ou redução de impostos existentes, inclusive com remuneração de congressistas que defendem essas isenções tributárias.

O arcabouço, assim, pode mexer nas chamadas despesas obrigatórias (Saúde e Educação). Embora no Projeto de Lei Complementar 93/23 (PLC 93/23) essas despesas estejam garantidas (com destaque para a importante garantia para o piso da enfermagem), Haddad sinalizou que essa questão também será revista, com teto para ampliação das suas despesas. Mesmo que as despesas obrigatórias sejam preservadas, sua tendência é de crescimento acima dos limites postos pelo PLC 93/23. Sendo assim, a sua preservação, dados os limites postos para ampliação das despesas, tende a gerar redução de outras rubricas (programas de moradia, infraestrutura urbana, segurança pública, cultura etc.). Predominará a lógica do lençol curto para as políticas sociais, enquanto os gastos com a dívida pública seguem garantidos. A pressão pela contenção dos gastos das despesas com saúde e educação será permanente e fortalecida para que o governo honre seus compromissos com o superávit primário (pagamento de juros ao capital especulativo). Outro agravante é a inclusão dos bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa, BNDES etc.) nos limites da ampliação de gastos. 

O que pretendem Haddad e Lula com isso? As análises preliminares dos setores democráticos e populares apontam que a nova regra fiscal será uma verdadeira ancora que impedirá um desenvolvimento social e econômico robusto, limitando a necessária ampliação de recursos para reestruturar e ampliar políticas públicas, gerar emprego e renda para o povo trabalhador, reforma agrária, desenvolvimento tecnológico etc. O fundamental da proposta é uma política fiscal subordinada aos interesses do rentismo, com atendimento muito limitado, e se tudo der muito certo, das demandas populares.

O sentido político geral é um novo acordo com as classes dominantes, nos marcos da hegemonia neoliberal, preservando seus interesses fundamentais que têm no sistema da dívida pública uma forma de drenar recursos da riqueza socialmente produzida para um punhado de capitalistas privilegiados. Abrem-se também condições para avanços do setor privado com as privatizações, via concessões e PPPs, dados os limites orçamentários do setor público acordados pelo próprio governo, e mantém-se o achatamento do custo da força de trabalho com a imposição de limites para aumentos reais do salário-mínimo e dos salários em geral, inclusive dos servidores públicos. A contrapartida ingenuamente esperada é que essas mesmas classes dominantes se comprometam com uma estrutura tributária menos permissiva (na Reforma Tributária e no fim das isenções mais abusivas), melhorando a arrecadação do Estado. O resto dependeria do crescimento econômico.

A probabilidade dessa combinação de fatores em negociação com as classes dominantes dar os resultados esperados é bastante reduzida. Não se trata aqui de catastrofismo: algum nível de crescimento econômico pode ocorrer durante o governo, inclusive em 2023 pode ser superior ao projetado pelo mercado. O Brasil, com a retomada de uma política externa chamada de “ativa e altiva” e estável, pode atrair investimentos em variadas áreas, inclusive usando o trunfo da questão ambiental. Mas a tendência principal é que, em vigorando uma política macroeconômica nos termos postos, isso será insuficiente para melhorias consistentes e duradouras nas condições materiais de vida povo e tende a aprofundar a nossa dependência do capital imperialista em geral. Além disso, o governo impõe às forças populares, democráticas e socialistas uma derrota ideológica – naturalizando e estabelecendo parâmetros supostamente “realistas” – para o capitalismo em sua fase neoliberal, dando-lhe maior legitimidade. 

Os 100 dias, os caminhos para derrotar a extrema-direita e os desafios da esquerda

O governo Lula é uma nova etapa da busca pela estabilidade política da hegemonia burguesa no Brasil. Depois dos grandes impactos sociais, políticos e econômicos do golpe de 2016 e do governo Bolsonaro, o regime democrático liberal encontrou em Lula a alternativa para sua própria crise. A maioria da esquerda, com o objetivo de bloquear uma possível fascistização do regime político, apoiou Lula.

Os primeiros 100 dias nos permitem levantar as seguintes perguntas: o eixo político e social do governo tenderá para o social-liberalismo já experimentado nas experiências anteriores, mas enfrentando um quadro de retrocessos social, político e ideológico maior? Ou o Governo Lula 3.0 escutará as vozes daqueles e daquelas que enfrentaram Bolsonaro e sua agenda ultraliberal e agora pedem por um projeto alternativo – popular, democrático e sustentado na mobilização social – que enfrente os interesses do grande capital? A resposta dependerá da mobilização popular e das opções do próprio governo. E essa resposta impactará nos rumos da luta contra o bolsonarismo.

Apesar de não ter havido uma alteração na relação geral de forças de classes no Brasil com a derrota de Bolsonaro e a vitória de Lula (pois continua a hegemonia burguesa e o atual governo é parte de sua sustentação), o novo governo cria condições de mudar o viés da luta de resistência popular.

Ao invés do movimento estar centrado (como foi no período anterior) em não perder direitos do povo, liberdades democráticas e soberania nacional (o centro era combater o neofascismo e não perder direitos), agora está colocada a recuperação do que foi perdido, pelo menos desde o segundo mandato de Dilma, e alcançar novas conquistas.

Além disso, mantém-se a tarefa histórica de derrotar o bolsonarismo. Mas é preciso construir caminhos sólidos para isso. Não se pode tratar objetivo de tamanha relevância histórica como algo abstrato, sem concretude e que serve de justificativas para domesticação das lutas populares ou até mesmo oportunismo puro e simples. A derrota do bolsonarismo deve associar-se a alguns objetivos que se colocam como pré-condições:

  1. É preciso melhorar as condições materiais de vida de nosso povo com políticas de transferência de renda abrangentes e bem executadas; aumento real do salário-mínimo; geração de emprego de qualidade e com direitos; e políticas públicas em saúde, educação, segurança alimentar, habitação popular, reforma agrária agroecológica e defesa dos territórios e condições de vida dos povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais etc.
  2. É preciso também um novo ciclo de organização dos trabalhadores e trabalhadoras, da juventude, do povo explorado oprimido em geral e da esquerda socialista para realizar amplo trabalho de formação/organização do povo trabalhador nos territórios, locais de trabalho, escolas e universidades. É urgente a retomada de fóruns amplos e democráticos para articularmos as lutas comuns dos sindicatos, entidades estudantis e demais organizações populares, superando a fragmentação e dispersão atual.
  3. É preciso mobilização permanente para defender as medidas democráticas e populares do governo contra os ataques do grande capital e da extrema-direita; defender uma agenda de revogação das medidas legais e infralegais dos governos anteriores (um verdadeiro revogaço), bem como das privatizações totais ou parciais de setores estratégicos; opor-se às propostas do grande capital que visam reduzir direitos, privatizar empresas públicas ou favorecer os monopólios privados; lutar contra projetos de caráter regressivo no Congresso Nacional, mesmo que apoiados ou propostos pelo Governo.

Esses aspectos gerais da tática devem se manifestar em bandeiras concretas, em uma plataforma de luta. Isso exige das forças democráticas, populares e socialistas a construção de agendas comuns que não sejam eventos esporádicos ou reativos. 

Até agora, com raras exceções, o quadro das mobilizações é de fragilidade. Neste momento, três fatores explicam essa situação: a) as derrotas acumuladas desde 2016 pesam sobre a moral dos explorados e oprimidos, mesmo nas suas vanguardas. É como se estivéssemos em lenta recuperação de um longo processo de batalhas perdidas, com um respiro a partir da vitória e posse de Lula; b) um receio de não alimentar a oposição de extrema-direita ao governo, considerando que nesses 100 primeiros dias era preciso reconstruir o básico; c) uma relativa, com exceções como o MST e as lutas pela revogação do NEM, subordinação dos principais partidos de esquerda e centro esquerda (e as organizações populares dirigidos por eles) à direção do governo, não exercendo a pressão necessária por um nova agenda de desenvolvimento social e econômico em novos termos, considerando as necessidades fundamentais da maioria de nosso povo.

Os dias que virão e as tarefas táticas das forças democráticas, populares e socialistas

Defender um Projeto Democrático e Popular que afirme a soberania nacional. As forças democráticas, populares e socialistas devem preparar-se para várias batalhas em várias frentes. É necessário que essas forças defendam um projeto nacional que aponte saídas para a grave crise nacional e esteja voltado para atender as principais necessidades da maioria do povo trabalhador. Sem combater os monopólios privados, o agronegócio (moderno), o imperialismo e a concentração de renda e riqueza, o fantasma do neofascismo continuará a pairar sobre nós. É preciso e urgente combinar intensa mobilização popular, disputa ideológica e um programa político alternativo.

Não ao Arcabouço Fiscal! A Dívida com o Povo Brasileiro deve ser prioridade do Governo Lula. As organizações populares devem disputar uma agenda na sociedade brasileira diferenciada daquela que as classes dominantes querem impor sobre o país e o governo. O pagamento da enorme dívida social da sociedade brasileira com a grande maioria do seu povo exige que o Estado tenha em suas mãos as ferramentas necessárias para esse movimento, o que exige que travemos a batalha pela retomada dos setores estratégicos da economia nacional, o fortalecimento dos bancos públicos para garantir seu papel no desenvolvimento econômico e social do país e no combate às desigualdades regionais e sociais e o controle, sem as amarras do capital financeiro, do orçamento público. Este deve voltar-se para prioridades bem definidas em políticas públicas fundamentais. A proposta do Arcabouço Fiscal (PLC 93/23) impede esse objetivo e, portanto, deve ser substituída por uma política fiscal voltada para um modelo de desenvolvimento nacional que atenda as demandas populares em saúde, educação, saneamento básico, infraestrutura urbana, moradia, reforma agrária, segurança alimentar etc. 

Revogar o “Novo Ensino Médio” e transformar a escola pública em espaços de esperança. O “Novo Ensino Médio” já se mostrou um projeto educacional excludente e que retira da grande maioria da juventude a esperança de um futuro melhor. Essa tem sido a luta com maior capacidade de mobilização até agora contra a herança do golpe de 2016 e do Governo Bolsonaro (2019-2022). O forte lobby de setores empresariais e das secretarias estaduais de educação combina dois fatores fundamentais entrelaçados: primeiro, a formação de estudantes que servirão como força de trabalho de baixo custo para as empresas; segundo, que os Governos Estaduais, seguindo uma política de “austeridade fiscal”, não querem ampliar ou recompor o quadro de professores e professoras do Ensino Médio.  Sendo assim, reduzem a base comum, diminuindo o peso de disciplinas que fundamentam compreensões básicas de funcionamento do mundo, e aumentam o “itinerário formativo” com disciplinas vagas e sem critérios válidos de aprendizagem e avaliação, compondo artificialmente a carga horária dos docentes. Quem mais perde com isso é a juventude dos setores mais empobrecidos, que observa sua possibilidade de mobilidade social através da educação ser inviabilizada. Na falta de esperança, tornam-se recrutáveis para empregos com baixa remuneração, a criminalidade e as ideologias de extrema-direita.

Retomar o controle e reverter o desmantelamento da Petrobrás. Devemos organizar mobilizações sociais para restauração do monopólio estatal do petróleo pela Petrobrás, para que a empresa seja pioneira na construção de alternativas para a transição energética. O ponto de partida dessa luta passa pela reversão da privatização dos ativos da Petrobrás, destacando a BR Distribuidora e as refinarias, mas avançando para outros setores. É preciso também reestruturar a Petrobrás como Empresa Estatal de petróleo e energia, dando conta de sua gestão, com absoluta transparência, e com mecanismos de controle do povo brasileiro. É preciso suspender imediatamente a política de preços da Petrobrás, com o fim do Preço Paritário de Importação (PPI), restaurando o objetivo de abastecer o mercado nacional de combustíveis aos menores preços possíveis, preservando a sustentabilidade da empresa. É preciso limitar a exportação de petróleo cru, com adoção de tributos que incentivem a agregação de valor e o uso do petróleo no país. Retomar o desenvolvimento da política de conteúdo nacional e de substituição de importações para o setor de petróleo, gás natural e energias potencialmente renováveis. Estabelecer um plano nacional de pesquisa e investimentos em energias potencialmente renováveis em conjunto com as universidades, intelectuais, movimentos sociais ambientalistas e as organizações populares. 

Reverter a privatização da Eletrobrás. A privatização da Eletrobrás é um enorme crime contra o povo brasileiro. A ilegalidade de todo o processo é visível e foi feita com vários mecanismos que impõem dificuldades para retomada do controle acionário da empresa pelo Estado, mas este continua ser responsável pela cobertura de eventuais prejuízos na Empresa. A Eletrobrás foi tomada de assalto pelo capital financeiro através da 3G Capital, liderada por Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira – mesmos setores que levaram a falência as Lojas Americanas com várias fraudes contábeis já comprovadas. O custo desse absurdo recairá sobre os consumidores, tanto individuais como empresariais. Além disso, uma empresa do porte e complexidade da Eletrobrás não pode estar submetida à lógica privada de curto prazo. A reversão da privatização da Eletrobrás exigirá das forças democráticas, populares e socialistas ampla mobilização social, mostrando para a população os impactos dessa situação em suas vidas. Não é correto esperar uma crise estourar, como já ocorre com algumas distribuidoras privatizadas, para que essa estratégica medida seja tomada.

Por uma Reforma Tributária que taxe os ricos e desonere os mais pobres e a classe média. Devemos também travar a luta por uma reforma tributária progressiva, que desonere os mais pobres e os setores médios e faça os mais ricos (milionários, multimilionários, bilionários e multibilionários) pagarem mais impostos. Para isso, ela deve incidir sobre renda, patrimônio e dividendos, não sobre o consumo popular e de setores médios. É preciso também a instauração de maior progressividade no Imposto de Renda, acelerando a isenção para aqueles que ganham até R$ 5 mil. As heranças e itens de luxo também devem ser taxados. Também é fundamental encerrar as farras das desonerações tributárias para setores que não têm oferecido nenhuma contrapartida efetiva para o bem-estar do conjunto da sociedade, seja gerando mais empregos, seja mudando sua matriz produtiva para responder à crise ambiental, dentre outras possibilidades. 

Lutar pela democratização das relações de trabalho no Brasil. É fundamental fortalecer a representatividade dos sindicatos, incluindo trabalhadores informais e com novas formas de trabalho em especial os de plataformas digitais, entregadores entre outros. Para isso, é necessário um novo marco regulador das relações de trabalho que garanta aos que vivem do trabalho o direito e a liberdade de auto-organização com independência e autonomia em relação aos patrões e aos governos. Nesse marco é necessário o estímulo à agregação sindical e ao fortalecimento da negociação coletiva, inclusive para o serviço público.

É pela vida das mulheres. Devemos intensificar a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, que têm relação direta com o combate à mortalidade materna. Pautar a luta pela legalização do aborto, que contribuirá no combate a extrema direita e a sua proposta da PEC do Nascituro (PEC do Estuprador), tanto no Congresso Nacional, como nas Assembleias Legislativas. Lutar por orçamento público para garantir a aplicação da Lei 14.541/23 que determina o funcionamento das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), 24 horas por dia. No terceiro Governo Lula, numa conjuntura marcada pelo ódio as mulheres, dos altos índices de feminicídio e pelo esvaziamento das políticas públicas para as mulheres e ações das redes conservadoras, é fundamental disputar um programa feminista classista, antirracista, antilgbtfóbica, anticapacitista, apresentando ao movimento de mulheres a necessidade de nos organizarmos e tomarmos as ruas, pautando justiça reprodutiva, investimentos em educação, políticas sociais e programas de emprego e renda. Na defesa de uma educação com uma perspectiva feminista, enfrentaremos o debate da necessidade dos espaços de convivência infantil nas escolas e universidades para as estudantes que são mães. A maternidade não pode ser encarada como instrumento de exclusão social e da vida acadêmica. Urge enfrentarmos a violência política de gênero. Nossas companheiras que estão nos espaços públicos, no executivo e legislativo, nas direções dos movimentos sociais são alvos da extrema direita. Enfrentar institucionalmente a violência política de gênero é garantir a vida das companheiras que ousam lutar e disputar nos espaços de poder as bandeiras e pautas feministas. 

CONSTRUIR O FUTURO NÃO É TAREFA PARA O AMANHÃ!

AVANÇAR A RESISTÊNCIA POPULAR NA LUTA PARA RECUPERAR DIREITOS E NOVAS CONQUISTAS!

COMBATER O NEOFASCSMO GOLPISTA!

OUSANDO LUTAR, VENCEREMOS!

Coordenação Nacional da APS/PSOL

28 de abril de 2023

Compartilhe nas Redes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *