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Eline Garcia, Ecóloga, Educadora Popular e Militante Ecossocialista da APS

Sempre introduzo as aulas sobre estrutura de ecossistemas e comunidades perguntando à turma se eles, enquanto indivíduos, escolhem sentir fome. O “não” é unânime. Então falamos sobre a nutrição e como ela é a forma pela qual obtemos energia – a partir dos alimentos – para realizar as nossas atividades internas e externas. Antes de seguir com os demais conceitos, deixo uma outra pergunta. Se não escolhemos sentir fome, se ela é uma necessidade orgânica, porque atendê-la, na maioria das vezes, depende de possuirmos dinheiro?

A fome é a sensação fisiológica pela qual o corpo percebe a necessidade de alimento para que consiga manter suas atividades inerentes à vida, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) se caracteriza por dor ou desconforto em função do consumo insuficiente de alimentos. Além disso, é considerada um fenômeno associado às questões de ordem econômica, social, política, de organização do espaço, e também, às relacionadas ao clima e aos recursos naturais. A insegurança alimentar é a condição de não ter acesso pleno e permanentes à alimentos, a fome é a condição mais grave, que pode ser de três tipos: aguda, crônica ou oculta, a última tem a ver com deficiência de nutrientes; enquanto que a crônica, também chamada de estrutural, é aquela que decorre principalmente das desigualdades sociais, onde a escassez e a má nutrição refletem a falta de recursos para aquisição de alimentos de maneira prolongada.

A despeito da ocorrência de eventos climáticos extremos (ex. secas, inundações, furacões…) e outras emergências sanitárias, a exemplo da Pandemia de COVID-19, que intensificam a fome em diversas regiões do planeta, os conflitos e as guerras também contribuem para seu aumento, a fome também é usada como arma de guerra, segundo a ONU. O Brasil, que foi considerado modelo internacional na luta pela erradicação da pobreza e da fome entre 2004 (9,5%) e 2013 (4,2%), reduzindo-a pela metade em relação ao índice inicial, retornou em 2018 ao mapa da ONU, atingindo em 2022 o pior patamar com 15,5% da população brasileira passando fome, 33,1 milhões de pessoas.

A pobreza e o desmonte de políticas públicas direcionadas aos povos do campo, das águas e da floresta nos últimos anos levou a fome a 60% dos lares da população rural, segundo o relatório “Olhe para a fome” [1]. O estudo também mostrou que a fome está mais presente em lares chefiados por mulheres (64,1%), pessoas pretas ou pardas (70%), e que possuem crianças (27,7%), nos quais a dificuldade de acesso a recursos hídricos também existia. Quando uma criança não tem o que comer, isso afeta seu desenvolvimento para toda vida, com prejuízos cerebrais, de comprometimento da aprendizagem, risco de baixa imunidade e podendo ser mais suscetíveis às doenças e levar à morte. Portanto, a fome também é usada como mecanismo de controle e opressão, que não por acaso atravessa gênero, raça e classe, devendo ser abordada com todos os recortes necessários.

A atual situação desumana e vergonhosa no País colocou o combate à fome como agenda prioritária nas frentes de luta e de defesa dos direitos humanos, presente no mote de mobilização do 8 de março, “Pela vida das mulheres! Em luta contra a fome, pela democracia e pelo bem viver” e também no tema da Campanha da Fraternidade 2023 da Igreja Católica, “Fraternidade e Fome”, sob o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14:16). No último dia 14, a FAO divulgou o relatório “O estado das mulheres nos sistemas Agroalimentares” [2], que aponta que as mulheres são 36% da força de trabalho agroalimentar na América Latina e no Caribe. Além disso, indica que a força de trabalho agrícola das mulheres é maior e está aumentando em relação à de homens, incluindo nas áreas rurais com emigração alta e predominantemente masculina, recomenda também favorecer o acesso a ativos, tecnologias e recursos. Ainda de acordo com o relatório, as intervenções que visam melhorar a produtividade são bem sucedidas quando abordam o ônus do cuidado e do trabalho doméstico, ou fornecem treinamentos e fortalecem a segurança da posse da terra. A desigualdade de gênero e opressão às mulheres estão nas bases da propriedade privada e posse da terra, constituindo entraves à superação do modelo de produção capitalista, compreendê-las e combatê-las de forma articulada e coletiva é fundamental.

O combate à fome no mundo serviu de pano de fundo para a Revolução Verde, período de grande desenvolvimento de técnicas agrícolas que visavam aumentar a produção de alimentos, contudo, ao invés de tornarem-se um meio para erradicação da fome, transformou a agricultura em um grande empreendimento capitalista, com uso de produtos químicos, sementes modificadas e técnicas que priorizavam a monocultura, aprofundando a concentração fundiária em países em desenvolvimento, que tornaram-se dependentes das tecnologias de países desenvolvidos. Nesse contexto, o Brasil se tornou um dos principais exportadores de alimentos do mundo – grãos – enquanto os conflitos derivados da expansão da fronteira agrícola e avanço sobre territórios e ecossistemas também se intensificaram.

Os efeitos nocivos de agrotóxicos na saúde humana e dos ecossistemas estão solidamente documentados, apesar disso o Brasil permanece como maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Segundo nota da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida [3], em fevereiro de 2023, 48 novos agrotóxicos foram liberados pelo Ministério da Agricultura, metade deles proibidos na União Europeia pelos riscos à biodiversidade e à saúde humana entre eles o finopril e imidacloprido, altamente tóxicos para as abelhas e o diquat que causa danos ao sistema nervoso central, incluindo doença de Parkinson. A biodiversidade descreve a riqueza e a variedade do mundo natural, que na sua complexidade exerce funções no ambiente e fornecem serviços ecossistêmicos vitais para a humanidade. Esses serviços podem ser de provisão, como no caso de alimentos, frutas, etc.; de regulação, como o das florestas na qualidade do ar; culturais, como plantas de uso ritualístico; ou suporte, que são aqueles necessários para que outros serviços existam. A polinização, por exemplo, é um processo natural e também um serviço ecossistêmico, responsável pela produção de frutos e sementes em ao menos três quartos dos cultivos globais, polinizadores (ex.: abelhas) são fundamentais para sistemas naturais e agrícolas. As alterações dos ambientes naturais pelas atividades humanas, especialmente às relacionadas ao modelo de produção capitalista voltado ao lucro, arriscam mecanismos e processos responsáveis pela manutenção da vida de diversas espécies, inclusive a humana.

Assim como a matriz energética, repensar os sistemas alimentares no Brasil é urgente. Apesar de ser bandeira de propaganda do país, o sistema agroalimentar hegemônico carrega em si a contradição de elevada produção e riqueza enquanto a fome cresce entre sua população. Além disso, também colabora com as ameaças à biodiversidade e à qualidade de vida e bem-estar da população, seja pelo aumento dos conflitos territoriais, por ser vetor de doenças, e/ou pela exaustão dos recursos. Na Amazônia, por exemplo, estudos já associam “trajetórias tecnoprodutivas” à maior incidência de doenças negligenciadas, como resultado das transformações intensas e homogeneizadoras da paisagem, derivadas de atividades agropecuárias onde as atividades agroextrativistas (que preservam a floresta) são mais indicadas para a região, garantindo benefícios econômicos e de saúde pública.[4]

É necessário que a população esteja cada vez mais ciente dos benefícios e prejuízos do modelo de desenvolvimento adotado. Atualmente, diferentes estudos apontam que a quantidade de alimentos produzidos no mundo é suficiente para alimentar a população global, com uma dieta caloricamente adequada, apesar disso, o fenômeno que os especialistas chamam de “dupla má nutrição”, a subnutrição e a obesidade, mostram tendências de aumento que trazem riscos à saúde em diferentes escalas [5].

Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira [6], a “Alimentação adequada e saudável deriva de sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável”, que inclui a priorização por sistemas alimentares diversificados, que favoreçam o acesso e consumo de itens in natura ou com mínimo de processos e aditivos e produção com mínimo de impacto ambiental, que promovam justiça social ao longo da cadeia produtiva e diminuam desertos alimentares garantindo segurança e soberania alimentar. A fome e a desnutrição são consequência de um modelo excludente, de produção voltada para o mercado e não orientada à manutenção das condições de vida, não há soberania alimentar sem soberania sobre os territórios. A soberania alimentar é a via para se erradicar a fome e a desnutrição e garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para todos os povos [7]. Os alimentos não são meras mercadorias, são direitos humanos.

A revolução será anticapitalista, antilatifundiária, antirracista, agroecológica, feminista e contra todas as formas de opressão, ou não será. 

17 de abril dia Internacional das Lutas Camponesas, reivindiquemos o direito à vida, tenhamos fome de justiça.

Eline Garcia, Ecóloga, Educadora Popular e Militante Ecossocialista da APS

Fontes:

[1] Relatório Olhe para a Fome. Disponível em: <https://olheparaafome.com.br/>

[2] Relatório da FAO O Estado das Mulheres nos Sistemas Agroalimentares, Disponível em: <https://www.fao.org/documents/card/en/c/cc5343en>

[3] Nota da Campanha Permanente Contra Agrotóxicos e Pela Vida. Disponível em: <https://contraosagrotoxicos.org/ministerio-da-agricultura-libera-42-agrotoxicos-quimicos-entre-eles-24-nao-autorizados-na-uniao-europeia/>

[4] CODEÇO et. al. Epidemiology, Biodiversity, and Technological Trajectories in the Brazilian Amazon: From Malaria to COVID-19. Frontiers of Public Heath. Disponível em: <https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpubh.2021.647754/full>

[5] POTIRA V. PREISS | SERGIO SCHNEIDERSistemas alimentares no século XXI. DEBATES CONTEMPORÂNEOS. Disponível em: < https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/211399/001115756.pdf>

[6] Guia Alimentar para a população Brasileira Disponível em < https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-brasil/publicacoes-para-promocao-a-saude/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>

[7] Declaração do Fórum sobre Soberania Alimentar, realizado em Havana, Cuba 2001. Disponível em <http://neaepr.blogspot.com/2010/01/declaracao-ii.html>

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