“Quem anda com porcos farelo come”. Em depoimento à PF, o ex-Ministro Sérgio Moro disse que desde agosto de 2019 Bolsonaro vem fazendo pressão para interferir na Polícia Federal. E silencia por todo esse tempo? Artigo de Lóri Beauvoir, a seguir.
Duas faces da mesma moeda – o confronto entre Moro e Bolsonaro
“Quem anda com porcos farelo come”. Em depoimento à Polícia Federal na semana passada, o ex-Ministro Sérgio Moro relatou que desde agosto de 2019 Bolsonaro vem fazendo pressão para interferir na Polícia Federal. Queria trocar o superintendente da PF no Rio por alguém “de sua confiança, com quem pudesse interagir”, para telefonar e solicitar relatórios de inteligência. Moro largou a magistratura para ser ministro de Bolsonaro porque supostamente acreditava que seu governo priorizaria o combate à corrupção – e silencia por todo esse tempo? O velho ditado popular diz muito da relação entre eles.
Como “água em pedra dura, tanto bate até que fura”, depois de oito meses de tentativas de Bolsonaro e negativas de Moro, finalmente o presidente conseguiu seu intento e já tem uma polícia federal para chamar de sua, mesmo tendo seu nome preferido barrado pelo STF. Conseguiu trocar o Superintendente da PF no Rio, ainda que ao custo de exonerar o Diretor Geral e forçar a saída, na sequência, de seu ministro mais popular, aquele que alegava acreditar que Bolsonaro iria moralizar o país – em seu distorcido conceito de moral. O ministro demissionário não saiu sem atirar: relatou longa sequência de pressões de Bolsonaro para receber relatórios sigilosos, os quais até mesmo o General Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) lhe teria advertido ser impróprio solicitar. Seu depoimento de oito horas de duração à PF de Curitiba, divulgado na íntegra, revela um Moro acossado, mas que se manteve no governo por todo esse tempo, sem denunciar as pressões. Valeu a pena seguir calado por tanto tempo diante dos crimes de responsabilidade que seguidamente Bolsonaro vem cometendo para receber a indicação prometida para o STF?
“É dando que se recebe” – um verso da oração de São Francisco muito apreciado por políticos em busca de objetivos muito mais concretos do que uma graça cristã. Moro ofereceu seu prestígio, amealhado no vale-tudo de sua cruzada anticorrupção, em troca de poder real que não se esgotaria nem de longe no Ministério da Justiça. Ofertou seu silêncio diante das ligações notórias dos filhos de Bolsonaro com a milícia do Rio de Janeiro. Calou-se diante das inescrupulosas e criminosas demonstrações de que para Bolsonaro os giros da economia valem mais do que a vida dos brasileiros. Contribuiu para alçar ao poder um insano defensor de torturas em uma eleição contaminada por mecanismos de divulgação de fake news pagos por empresários em caixa 2. Mostrou cegueira seletiva diante do gabinete do ódio que funciona no Palácio do Planalto – até que virou alvo. Testemunhou durante oito meses pedidos ilegais de relatórios sigilosos e de controle da PF justo no Rio de Janeiro, onde grassa a milícia. Mas, no depoimento à PF, Moro não avalia nenhum desses desvios – apenas relata o último caso. Prevaricação é crime que pode cometer um servidor público ao não denunciar conduta criminosa ou ordem ilegal de que tenha conhecimento.
“De onde menos se espera, daí é que não vem nada mesmo”, já dizia o sábio humorista Barão de Itararé no começo do século XX. Quem esperava robustas provas de Moro, suficientes para quebrar a resistência do Congresso a um processo de impeachment durante a pandemia do novo coronavírus, já deveria ter aprendido que o conceito de “prova” de Moro é bem alargado. Nas oito horas de depoimento à PF, a munição do ex-ministro se resumia a postagens de WhatsApp e indicação de testemunhas de declarações reveladoras das intenções de Bolsonaro de abocanhar a PF do Rio, além da gravação de reunião ministerial onde a pressão teria sido explícita e humilhante. Mas esse inescrupuloso intento Bolsonaro já tinha confessado abertamente no caudaloso pronunciamento à TV, ladeado por ministros com expressões constrangidas, no dia da demissão de Moro. Bolsonaro crê que ganhou o Brasil “de porteira fechada” e não esconde a irritação com as limitações constitucionais, mesmo em uma democracia liberal frágil como a nossa. Foram três dias de especulações e um grosso volume de transcrição do longo depoimento sem nenhuma novidade. Verdade que pressões não republicanas, assim como atos de corrupção e ocultação de patrimônio, não costumam deixar ofícios comprobatórios. Acrescido a isso, sabemos que a caracterização de crime de responsabilidade é essencialmente política.
“Assim é, se assim lhe parece”, já dizia Pirandello em 1917, e em tempos de pós-verdade tudo depende da conveniência política. A consideração das evidências trazidas por Moro vai depender da queda da popularidade de Bolsonaro e da persistência do prestígio político do ex-juiz – apesar da Vaza-Jato, que só afetou sua credibilidade entre aqueles que já lhe eram críticos. Na verdade, o prosseguimento das denúncias de Moro no Congresso vai depender dos planos da centro-direita, que já se descola de Bolsonaro. É uma incógnita se esse poderoso segmento político quer inflar uma provável candidatura de Moro à presidência ou vai preferir alimentar outro nome mais orgânico, como Maia ou Mandetta. Se banca o custo do impedimento de Bolsonaro ou se prefere que ele mesmo vá se esborrachando até 2022 – tática que nisso se assemelha à dos petistas. Antes disso, o inquérito tem que escapar da gaveta do Procurador Geral da República Augusto Aras, até agora fiel a Bolsonaro e que já avaliou como frágeis as provas apresentadas. Mas basta uma decisão tomada e a articulação política ser fechada para que qualquer fagulha vire uma fogueira.
“Depois da porta arrombada, porteira onde passa um boi passa uma boiada”; como na sabedoria popular gaúcha, Bolsonaro está descontrolado, já atravessou as fronteiras do tolerável numa democracia e nada lhe acontece além de moções de repúdio – mas sobre isso Moro silencia. Bolsonaro, já tendo testado os limites, se sente livre para seguir afrontando o Congresso, o STF, a imprensa e as liberdades democráticas, e o cansaço com a repetição de seus crimes já normalizou o abuso. Por isso nesta quinta, 07/04, Bolsonaro ousou seguir a pé com empresários do Palácio do Planalto ao Supremo, para pressionar a Corte na figura do presidente Toffoli, que docilmente aceitou o tranco impensável. Analogias descabidas sobre “CNPJ em UTIs” fizeram troça do aumento exponencial das mortes causadas pela pandemia de covid-19 e da insuficiência dos leitos no país. Juntamente com Bolsonaro, os líderes da burguesia foram pressionar pelo fim das já frouxas restrições à circulação de pessoas – no momento do pico da contaminação, com triste recorde de mortes, e sem que o sistema de saúde, depauperado pelo baixo investimento, esteja preparado para essa sobrecarga. Obviamente todos são cúmplices da criminosa pregação de Bolsonaro contra o isolamento social. Diversas vozes vieram a público repudiar mais uma vez essa odiosa afronta de Bolsonaro – e não se ouviu a voz de Moro, como não se ouvia enquanto ele estava no governo. Será que esse patético espetáculo não o comove, ou ele vai disputar esse poderoso segmento eleitoral com Bolsonaro?
“Atirou no que viu e acertou o que não viu” é outro dito popular que serve como carapuça sob medida para o depoimento de Moro. Ao dizer que algumas de suas mensagens já tinham sido apagadas – e podem ser recuperadas pela investigação – porque, “desde que seu celular foi atacado por hackers em 2019, não guarda muitas postagens”, Moro acabou validando a Vaza-Jato. Se para ele as postagens são provas incontestáveis das intenções de Bolsonaro, então que também sua suspeição seja julgada pelo STF, no caso da condenação do ex-presidente Lula, já que as postagens publicadas pela revista online The Intercept Brasil demonstram claramente a confusão de limites entre juiz e promotoria. Neste caso o STF, que sentou em cima do julgamento de sua suspeição como juiz contra Lula, parece correr com celeridade. Celso de Melo, em retórica firme, exigiu a gravação da reunião que comprovaria o interesse obsessivo de Bolsonaro em dominar a PF do Rio, bem como na exigência do depoimento dos ministros militares que testemunharam de perto o assédio institucional – “sob condução coercitiva ou sob vara”, caso desobedeçam à intimação para depor. Esse depoimento simultâneo dos ministros militares será um teste da fidelidade das Forças Armadas ao governo Bolsonaro – confirmarão que realmente o teriam aconselhado a desistir de receber relatórios sigilosos de inteligência da PF? Ou vão se tornar cúmplices de crimes de responsabilidade por ocultação?
Tudo vale a pena se a ambição não é pequena, poderia dizer Moro em paródia de Fernando Pessoa. Por que não largar 22 anos de magistratura, depois de contribuir para o impeachment de uma presidenta, mandar prender um ex-presidente, aparentar fidelidade a um inescrupuloso candidato à presidência sem qualquer histórico de combate à corrupção nem apreço pela democracia, já que o prêmio poderia ser a abertura das portas do poder? Nesse horizonte dourado, o Ministério da Justiça era muito pouco. Sequer o STF era suficiente, embora fosse um acalantado estágio. O sonho era justamente o lugar de Bolsonaro, movido nas ruas pelas mesmas hordas de fanáticos de extrema-direita e neofascistas, para tocar o mesmo projeto de desmonte do Estado e retirada dos direitos dos trabalhadores que o Capital exige. É para preservar esse legado que Moro se cala diante dos arroubos de sua ex-liderança, inclusive porque ele os insuflou com os abusos midiáticos da Lava-Jato. Certamente uma parte considerável desse latifúndio de fanáticos, que desprezam os direitos humanos e as garantias democráticas, já terá se deslocado e poderá se somar ao seu capital próprio dos lava-jatistas por convicção. Lá estará Moro para os recepcionar, ele que trabalhou muito para o crescimento dessas hordas. Dai a César o que é de César, já diziam os romanos.
As duas faces da moeda.
Quem anda com porcos farelo come.
Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.
É dando que se recebe.
De onde menos se espera, daí é que não vem nada mesmo.
Assim é, se assim lhe parece.
Depois da porta arrombada, porteira onde passa um boi passa uma boiada.
Atirou no que viu e acertou o que não viu.
Tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Dai a Cesar o que é de César.
*Lóri Beauvoir é professora e militante da APS.