O documentário “A democracia em Vertigem” é denúncia sincera do golpe e da eleição de Bolsonaro. Mas não é toda a verdade. O PT também é responsável e a democracia liberal não é verdadeira democracia. Artigo de Fernando Carneiro*, a seguir.
A democracia não está em vertigem, a democracia é uma vertigem
Melhor dizendo: a democracia é uma miragem.
Mas, comecemos pelo começo. A primeira conclusão que temos que tirar do documentário “A democracia em Vertigem” é que ele precisa ser visto! Visto por todos e todas que pretendem entender o que se passa no Brasil atual. Relato pessoal, mas com amplitude universalizante, o filme de Petra Costa traz elementos indispensáveis para qualquer análise da conjuntura. Sua voz atravessa nossos tímpanos e chacoalha nossas certezas. Há lacunas? Sim, muitas. Mas não creio que ela tenha tentado fazer um relato que contemplasse a totalidade da realidade brasileira. É uma perspectiva dela, com seus acertos e erros. Natural. E isso não tira a força do filme, pelo contrário, talvez até reforce.
Os petistas exaltam o filme como uma redenção do lulo-petismo, vítima de tramoias insidiosas de uma direita asquerosa. O golpe, o impeachment, a prisão de Lula e a vitória de Bolsonaro são, de fato, construções dessa direita. Isso é verdade, mas não toda a verdade.
Ainda que de maneira episódica e lateral Petra indica os pecados capitais cometidos pelos governos do PT, tanto de Lula quanto de Dilma. Mostra que o petismo se tornou, em grande medida, aquilo que combatia. Se incorporou totalmente ao status quo neoliberal e funcionou como um elemento de estabilização da hegemonia burguesa. Lula tem muita razão quando fica indignado com os banqueiros que “nunca ganharam tanto dinheiro” quanto no seu governo, mas, apesar disso viraram as costas a ele e à sua sucessora.
O PT não foi iludido. O PT iludiu. Não foi um escorregão ideológico, foi uma construção de muitos anos. Toda a descaracterização do programa, dos princípios, da ética e da combatividade originários da fundação do PT, foi consciente. Foram opções para tornar palatável ao grande capital o “Sapo Barbudo”. E deu certo. Por algum tempo, é claro. Quando a burguesia se deu conta que o petismo estava se tornando ineficiente na manutenção da hegemonia do capital e quando vislumbrou a possibilidade de voltar a gerir ela própria a máquina estatal, defenestrou, sem piedade, o petismo do governo. E usou toda sua expertise em artimanhas legais e ilegais. Nada de novo nesse modo de agir. O filme revela, ainda que superficialmente, esse processo de adaptação.
Outro problema do filme é uma certa construção messiânica da figura de Lula, que surge como um herói nacional e redentor do povo. Não acredito em messias. A luta é sempre coletiva, ainda que possa, e muitas vezes seja, personalizada. De qualquer forma não acredito ser correto eleger heróis e menos ainda ícones de uma luta que é coletiva.
Mas nada disso tira o mérito do filme/documentário de Petra, que desnuda uma parte da alma nacional. O Brasil vive momentos difíceis de apologia à ignorância, em que opiniões substituem o conhecimento e que a imbecilidade parece estar vencendo a razão. Petra faz um excelente resgate da genealogia do golpe e do impeachment, revelando as conexões que levaram à derrocada do governo Dilma e por conseguinte dos 13 anos de governo do PT. Só por isso já valeria à pena ver “Democracia em Vertigem”. Mas o filme é mais que isso. É um relato bravo e sensível de alguém que não apenas viu, mas viveu essa história de perto e por isso mesmo Petra foi acusada de parcial. Na minha opinião isso não diminui em nada a seriedade do relato. Ter lado e assumir publicamente esse lado é corajoso e da forma como foi feito resguarda a seriedade científica e a credibilidade do filme.
Mas afinal a democracia está em vertigem? Antes de responder a esta pergunta talvez seja melhor nos fazermos outra: o que é a democracia? Segundo a definição corrente se trata de uma forma de governo em que o povo elege livremente seus representantes e exerce a soberania mediante um sistema plural, com liberdade de imprensa, de manifestação, de associação e de organização política e respeito aos direitos civis e individuais de cada cidadão. Pode haver diferenças pontuais sobre essa definição, mas em geral se assume como válida.
Ao longo dos anos, principalmente mais recentemente, a democracia assumiu um valor universal. Não creio nisso. A Democracia não existe em abstrato, democracia não é um modo de produção, não é um sistema, é um regime que pressupõe a existência de instituições hoje atinentes à democracia burguesa: parlamentos, tribunais, eleições, partidos, alternância nos governos e uma suposta liberdade de imprensa.
Ao contrário do que pensam Bolsonaro e sua prole, não basta ter “socialista” no nome para ser socialista de fato, por isso o Nazismo não é de esquerda. Não basta ter “democrático” no nome para ser de fato democrático, se fosse assim a Coréia do Norte seria uma república popular e democrática.
Uma democracia convive perfeitamente com as iniquidades do capitalismo. Segundo a ONU mais de 820 milhões de seres humanos passam fome, não por falta de alimentos, mas por falta de recursos financeiros. A cada 4 segundos um ser humano morre de fome pelo fato de não ter dinheiro. E isso tudo é plenamente compatível com a “democracia”, desde que elejamos a cada quatro anos nossos algozes.
É claro que uma democracia é muito melhor que uma ditadura. Eu mesmo dediquei vários anos de minha vida à luta contra a ditadura. Fui enquadrado e julgado pela famigerada Lei de Segurança Nacional (LSN), mas isso é muito diferente de fazer apologia à democracia como um valor universal. Claro que sou defensor da existência de mecanismos democráticos dentro de uma sociedade capitalista. Mais ainda numa sociedade socialista, aliás o PSOL tem esse nome exatamente para se opor ao chamado “socialismo real” dos países que viveram a égide do stalinismo. Queremos o socialismo com democracia, com liberdade. Em verdade o socialismo só pode ser chamado como tal se houver muito mais liberdade e democracia que na maior das “democracias” capitalistas.
A democracia é uma coisa boa. Lutamos muito por ela e precisamos defendê-la sempre e principalmente agora, quando o bonapartismo de Bolsonaro a está ameaçando diariamente. Mas é forçoso reconhecer que ela não basta. O Estado Democrático de Direito não pode ser nosso objetivo final. Pra ser bem explícito: não basta a democracia enquanto milhões de pessoas literalmente morrem de fome, não têm emprego, não têm acesso à saúde, à educação, à moradia digna, à água e ao saneamento.
Não basta eleger vereadores, deputados, governadores e presidentes enquanto a barbárie se instala na sociedade. Por mais que não gostemos é preciso reconhecer que Bolsonaro foi eleito dentro das regras da democracia vigente. Ah, dirão alguns, “mas ele usou criminosamente das fake News, o judiciário e o ministério público fizeram conluio criminoso para impedir a candidatura de Lula, usou e abusou do poder econômico, etc.” Tudo isso é verdade, mas prosperou dentro dos limites estabelecidos pela democracia burguesa. Ou foi a primeira vez que a justiça foi injusta em nosso país? Que o digam o extermínio de nossa juventude negra, o poder das milícias, as milhares de prisões injustas e a corrupção que grassa em toda a estrutura judiciária nacional, o STF incluso. Não foi a primeira vez que a mídia foi parcial, aliás a história da mídia em nosso país sempre teve lado, e não foi o nosso. E também não foi a primeira vez que o poder econômico determinou o resultado de uma eleição. A democracia é indispensável, mas insuficiente, muito insuficiente.
Na necessária luta pela democracia não podemos esquecer nosso objetivo final: acabar com as desigualdades, com a exploração, com as opressões, com as injustiças de toda ordem e isso só virá com a derrocada desse sistema podre que é o mundo do capital. Queremos o socialismo com liberdade, democracia e justiça social. Sonho? Talvez, mas um belo sonho, pelo qual vale a pena lutar. Não se economiza ao sonhar. Restringir nossos horizontes à conquista da “democracia como valor universal” é um erro que não temos o direito de cometer. Esse tipo de democracia é uma miragem. E não podemos nos perder nesse atalho pois ele não nos leva a um lugar muito diferente do que estamos.
Veja o filme de Petra. Vale muito à pena. Mas não deposite nele as esperanças de uma redenção. Creio mesmo que isso não seria justo com os objetivos da autora/diretora. Veja-o como ele é. Um belo e sensível relato de um duro momento de nossa história. Uma história com a qual precisamos aprender. Uma história que devemos ter a sabedoria de mudar.
* Fernando Carneiro – historiador e vereador pelo PSOL/Belém
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