“O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou
que está acontecendo? Eu estava em paz quando você chegou.” Por Fernando Carneiro* (Nando Reis)
O ataque à boate Pulse, em Orlando, chocou o mundo. Mais uma vez nos estarrecemos diante de um massacre que nos faz pensar o quão humanos ainda somos. Foi o pior ataque dessa natureza na história dos Estados Unidos. Não foi o primeiro. Não será o último.
Enquanto nos perguntamos o que pode ter motivado essa ação irascível, algumas coisas nos saltam aos olhos. A primeira é o culto à arma nos EUA. O país que se vangloria de ser a “maior democracia do mundo” faz questão de cultivar sua cultura belicista. Embora não haja estatísticas confiáveis, estima-se que existam mais de 310 milhões de armas nas mãos de civis, destas 114 milhões são revólveres, 110 milhões rifles e 86 milhões espingardas. Os EUA detêm o maior complexo militar do planeta, e também colecionam números estratosféricos de violência. Estudos do Jornal Tampa Bay afirmam que entre 1968 e 2011 houve 1,4 milhões de mortes por arma de fogo. Número maior que o total de americanos mortos em todas as guerras que os EUA já participaram, desde a independência até a guerra do Iraque (1,2 milhões de mortos). Dados do Departamento de Justiça indicam que, entre 2001 e 2011, foram 130.347 mortes relacionadas a armas de fogo, enquanto que vítimas de atentados terroristas somam, no mesmo período, 3 mil pessoas, incluindo os ataques de 11 de setembro. De janeiro a outubro de 2015 foram 294 massacres (sendo 45 em escolas), com 9.956 mortos e mais de 20 mil feridos, dados do Shooting tracker, Gun Violence Archive.
Por onde se vê os números são alarmantes. Mas é um negócio muito lucrativo. Estima-se que o comércio internacional de armas movimente cerca de US$ 80 bilhões por ano. Mas segundo o Sipri (Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo, Suécia) essa cifra é apenas a ponta de um iceberg, pois não considera dados da China e do Reino Unido, que não fornecem informações sobre exportações, mas principalmente por não considerar a venda doméstica, que é muitas vezes maior que as exportações.
Uma das armas usadas por Omar Mateen, autor do ataque em Orlando, é o famoso fuzil AR-15. Essa arma dispara 800 balas por minuto, ou 13,3 por segundo. Uma verdadeira máquina da morte. Cobiçada e vendida livremente nos EUA, que possuem mais de 5.400 empresas licenciadas para fabricar armas em solo americano. Entre 1994 e 2004 a venda do AR-15 foi proibida nos Estados unidos, mas por pressão da NRA (Associação Nacional do Fuzil) essa restrição foi derrubada. Omar comprou o seu AR-15 dias antes do atentado. A história demonstra que após episódios como esse o comércio de armas aumenta significativamente, talvez por receio de restrições ou apenas por veiculação da ideia de que mais armas signifique mais segurança.
Contudo não é só esse culto ao belicismo que explica o atentado. O alvo é bastante revelador: Omar quis atingir (e de fato atingiu) a comunidade LGBT mundial. Sua mensagem foi clara. Trágica. Violenta.
Homofóbico. Agressor de mulheres e possivelmente um homossexual em conflito com sua orientação, o fato é que Omar partilhava a concepção de que ser LGBT é uma doença. Uma tese difundida à exaustão por diversas ideologias e justificada pelo fundamentalismo religioso em pleno século XXI. O ataque de Orlando tem uma inequívoca motivação homofóbica. Não pode haver dúvida sobre isso.
Existem mais de 200 projetos LGTBfóbicos tramitando nas casas legislativas dos EUA. Alguns, como a Lei da Liberdade Religiosa, do Mississipi, permitem a recusa de ofertar religião a pessoas “inconsistentes”, leia-se LGBT’s. O candidato republicano, que a princípio parecia uma piada, mas se consolidou, Donald Trump, é porta voz desses movimentos conservadores e preconceituosos. Ele próprio já se declarou contra o casamento gay, xenófobo, racista, machista e sexista.
Recentemente ouvi um pastor comentar que sua igreja estava relacionando fiéis que queriam “mudar” sua “opção” sexual. Eram homossexuais que queriam deixar essa condição e “virar” homens “normais”. Perguntei-lhe se a igreja também “ajudava” heterossexuais que pretendiam assumir sua condição de homossexuais. Sua resposta, claro, foi que não, pois isso não era “normal”. Esse episódio poderia parecer inocente, mas a mensagem que passa é poderosamente preconceituosa e potencialmente perigosa. Reforça a ideia de que se ser gay, lésbica, travesti, transexual ou bissexual é uma doença que precisa de cura.
Homofobia mata. Isso não é um exercício de retórica. O Brasil detém o vergonhoso índice de país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Nos últimos 6 anos foram 600. Em 2015 foram 318 LGBT’s assassinados. Um a cada 27 horas. Isso para não mencionar as inúmeras formas de violência psicológica, bullying, difamação, injúrias verbais e outras formas de discriminação que diariamente violam os direitos humanos mais elementares da comunidade LGBT.
A violência contra a mulher, como a praticada por Omar, também mata e viola direitos. No Brasil a cada 11 minutos uma mulher é violentada. O recente estupro coletivo de uma jovem no Rio de Janeiro, infelizmente, não é um caso isolado. Mas o mais incrível é que o estupro em si causou menos revolta que a veiculação de uma campanha contra a Cultura do Estupro. “Não há cultura do estupro no Brasil” vomitaram muitos, inclusive parlamentares federais. Contudo a realidade é muito mais forte que esses axiomas. Quem nunca ouviu expressões como: “mas também, ela estava com um shortinho tão curto… ela estava provocando!” NÃO IMPORTA SE ESTAVA DE BURCA OU DE BIQUÍNI. A culpa do estupro nunca é da vítima. Tentar justificar uma violação é reforçar a cultura do estupro. Que existe sim!
Dito isso voltamos à pergunta original: quem apertou o gatilho em Orlando? Apertaram todos os que cultuam o belicismo, que pregam a intolerância, que discriminam uma pessoa por sua orientação sexual, que acham que a culpa de um estupro é da vítima, que professam os diferentes tipos de fundamentalismo e quem crê que ser LGBT é uma doença. Basta!
*FERNANDO CARNEIRO – Historiador e vereador pelo PSOL – Belém